Veste a saia

zzzzsyd - 720

Hoje, canto o improvável.

Dustin Hoffman começou a mudar de sexo antes de começar a filmar Tootsie. Lembram-se? Hoffman interpretava um actor desempregado por causa de um feitio inconsensual, entre o semi-perfeccionismo de Passos Coelho e a semi-improvisação de António Costa. A saia que Coelho ou Costa não vestirão, vestia-a Hoffman, em Tootsie, para conseguir o papel de Dorothy, a resoluta administradora de um hospital. A improvável saia, vestido e collants, tudo assentava bem ao corpo de homem de Hoffman, fazendo dele (ou dela?) uma das mais deliciosas matrafonas do cinema dos anos 80.

Para aceitar ser essa mulher, Hoffman exigiu que Sidney Pollack, o realizador, interpretasse ele próprio o papel de agente de Dorothy. Disse-lhe Hoffman: “Syd, arranjes quem arranjares, bem me podem mandar vestir uma saia que eu não a visto. Mas se fores tu o agente e me disseres ‘veste a saia!’, visto logo a saia.” Pollack mandou-o bugiar. Estava em casa, e toca à porta um estafeta com um ramo de muitas rosas tão vermelhas como o meu SLB. Leio-vos o cartão que vinha junto: “Por favor, sê o meu agente. Com amor, Dorothy.” Aceitavam, não aceitavam? Assim aceitou o improvável Pollack.

Foi um cartão de visita com essa doçura que outro Sidney exibiu na vida e nos filmes. Falo de Sidney Poitier. Fez uma bela carreira de actor negro em território branco. No teatro, estreou-se num pequeno papel numa peça do americaníssimo Aristófanes. Foi em Lisístrata, comédia em que as mulheres gregas inventaram a greve ao sexo. Fechavam-se em copas enquanto os homens não negociassem a paz que pusesse fim à guerra do Peloponeso.

Fechassem as mulheres o que fechassem, Poitier tinha que abrir a boca para dizer doze linhas. Casa cheia de mulheres gregas e de críticos teatrais, Poitier sobe ao palco e varrem-se-lhe as réplicas. Pior, misturam-se. Um actor lança-lhe a primeira frase e Poitier responde-lhe com a oitava linha que tinha para dizer. Fala seguinte e Poitier atira-lhe com a quinta. À sua volta, Poitier só via actores a revirar olhos. Saem as críticas. Um triunfo: “Mas quem é o jovem actor que aparece brevemente no primeiro acto, tão divertido e exuberante, numa palavra, encantador?”

A verdade do cinema é estar aberto à improbabilidade que, consta, é a maior verdade da vida.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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