So long, Leonard.

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Pouco depois do choque diante da notícia, me ocorreu que Leonard Cohen estava com pressa de rever Marianne.

Sim, a notícia de que ele morreu é um choque. Estava com 82 anos, mas parecia saudável, acabava de lançar um novo disco, You Want it Darker agora em outubro. Quando Mary foi vê-lo em Dublin, com Andrea, em 2013, ele saltitava feliz como uma criança no palco, de onde só saiu após quase 3 horas de show maravilhoso, que eu, pateta, imbecil, não vi por causa da bola de ferro amarrada a meu pé.

Mas parecia que ele intuía, que ele sabia: “I’m ready, my Lord”, diz, na faixa que tem o nome do novíssimo álbum. Estou pronto, meu Senhor.

 “If you are the dealer, I’m out of the game

If you are the healer, it means I’m broken and lame

If thine is the glory then mine must be the shame

You want it darker

We kill the flame

Magnified, sanctified, be thy holy name

Vilified, crucified, in the human frame. (…)

I’m ready, my Lord.”

(Se você é o crupiê, estou fora do jogo. Se você é o curador, então estou quebrado e manco. Se vossa é a glória, então minha deve a vergonha. Você quer mais escuro, nós matamos a chama. Magnificado, santificado seja vosso sagrado nome. Vilificado, crucificado, no corpo humano. Estou pronto, meu Senhor.)

Gilberto Gil uma vez escreveu que, se quisesse falar com Deus, teria que ficar a sós, apagar a luz. Leonard Cohen falava com Deus diante dos holofotes, diante dos fãs, abertamente:

I asked my father,

I said, “father change my name.

The one I’m using now it’s covered up

With fear and filth and cowardice and shame. (…)

He said, “I locked you in this body,

I meant it as a kind of trial.

You can use it for a weapon,

Or to make some woman smile.” (…)

“then let me start again, ” i cried,

“please let me start again,

I want a face that’s fair this time,

I want a spirit that is calm.”

(Eu pedi a meu pai, “pai, mude meu nome. O que eu estou usando agora está coberto de medo e sujeira e covardia e vergonha”. E ele disse: “Tranquei você nesse corpo como uma espécie de provação. Você pode usá-lo como uma arma, para fazer alguma mulher sorrir.” E eu gritei: “Então me deixe começar de novo. Quero um rosto que seja belo desta vez, quero um espírito que seja calmo”.)

Meu Deus do céu e também da terra, que beleza, que imensa beleza há nesta exclamação de dor: I want a face that’s fair this time, I want a spirit that is calm.”

***

O Deus de Leonard Cohen deu a ele um rosto belo, um corpo esbelto – que ele sempre vestiu com imensa elegância –, mas ele gostava de brincar que era feio. No mesmo disco de 1974 – New Skin for the Old Cerimony – em que gravou “Lover lover lover”, dos versos logo acima, ele canta também “Chelsea Hotel #2”:

I remember you well in the Chelsea Hotel

You were famous, your heart was a legend.

You told me again you preferred handsome men

But for me you would make an exception.

And clenching your fist for the ones like us

Who are oppressed by the figures of beauty,

You fixed yourself, you said, “Well never mind,

We are ugly but we have the music.”

(Lembro bem de você no Chelsea Hotel, você era famosa, seu coração era uma lenda. Você me disse de novo que preferia homens bonitos, mas comigo faria uma exceção, e, apertando seu pulso pelos que como nós são oprimidos pelas figuras de beleza, você disse: “Bem, não ligue, somos feios, mas temos a música.”)

Leonard Cohen escreveu essa letra para Janis Joplin. Ele mesmo contou isso dezenas de vezes, em seus shows.

Era um homem que amava as mulheres.

Seu disco de 1977 tinha o título de Death of a Ladies’s Men. O LP tinha capa dupla, que se abria não verticalmente, como as capas de Blonde on Blonde de Bob Dylan e Dez Anos Depois de Nara Leão, e sim horizontalmente, para mostrar o então ainda jovem Leonard Cohen, cabelos fartos bem negros, entre duas belas mulheres.

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Amou muitas.

Nos anos 70, teve um casamento (sem papel) com Suzanne Elrod, uma artista plástica de Los Angeles. Tiveram um casal de filhos, Adam, nascido em 1972, e Lorca, nascida em 1974, que ganhou o nome, claro, como uma homenagem a Federico Garcia Lorca. (Anos mais tarde, em 1986, Cohen participaria de um disco internacional em homenagem ao poeta espanhol, do qual participaram também Georges Moustaki, Donovan e Chico Buarque; para o disco, adaptou o poema e criou uma de suas mais belas melodias, “Take this waltz.”)

Suzanne é a bela mulher que está à direita na foto da capa de Death of a Ladies’ Man. A da esquerda da foto é uma modelo húngara, Eva LaPierre.

Não foi para a mãe de seus dois filhos, no entanto, que escreveu “Suzanne”, uma de suas primeiras canções, a primeira a fazer sucesso, na voz de sua amiga Judy Collins. A canção foi feita para Suzanne Verdal, que foi mulher de um amigo dele, o escultor Armand Vaillancourt, de Québec, a província natal do poeta e compositor – ele nasceu em Westmount, um subúrbio rico de Montréal. (Apesar de ser Québécoise, só falava francês com um sotaque fortíssimo, como se pode ouvir na sua gravação de “Un Canadien Errant“, no disco de 1979, Recent Songs.)

Nos anos 80, teve uma relação com a fotógrafa francesa Dominique Issermann, que criou os primeiros vídeos para músicas dele, “Dance me to the End of Love” e “First We Take Manhattan”.

Nos 90, a eleita foi a atriz Rebecca de Mornay. Rebecca foi uma das produtoras de The Future, o disco dele de 1992, e, na segunda página do encarte do CD, há uma dedicatória, um trecho tirado do Gênesis, capítulo 24, que começa assim: “And before I had done speaking in mine heart, behold, Rebecca came forth with her pitcher on her soulder”.

(Um parêntese: em The Future, o disco dedicado a Rebecca de Mornay, Leonard Cohen, o homem da palavra, o escritor, o poeta que só passou a se dedicar às canções já maduro, bem depois dos 30 anos, compôs uma música instrumental, “Tacoma Trailer“, que é de fazer inveja aos maiores melodistas, tipo Egberto Gismonti, Fahir Atakoglu, Marco Antonio Guimarães, Astor Piazzolla, só para citar alguns muito especiais.)

***

Essas foram as ligações mais longas, mais duradouras, que são absolutamente públicas. Tenho para mim a certeza de que, entre Suzanne, Dominique e Rebecca, houve muitas, muitas, muitas outras. Amores ou paixões ocasionais, como a Janis Joplin da canção “Chelsea Hotel #2”. Ocasionais, mas eternas enquanto duraram, para citar outro poeta, Vinicius.

Duvido que ele tenha deixado escapar uma sequer de suas backing vocals, todas de vozes imaculadas, e todas sempre lindas.

Isso é apenas uma certeza que tenho para mim mesmo, um chute, uma intuição. Não há prova cabal – mas que foram muitas, ah, lá isso foram.

Leonard Cohen era como François Truffaut, outro ladies’ man, outro homem que amava as mulheres. Truffaut tinha aquele tipo de coração de mãe, em que sempre cabe mais uma, e a cada filme que fazia, apaixonava-se por sua atriz. Amou Jeanne, amou Françoise, amou Catherine, depois amou sobretudo Fanny.

Leonard Cohen amou sobretudo Marianne.

Marianne C. Stang Jensen Ihlen, uma norueguesa nascida no pequeno vilarejo de Larkollen em 1935, um ano depois dele mesmo.

zzzzcohen4Viveram juntos durante quase toda a década de 60. Por um bom tempo, viveram na ilha grega de Hidra.

So long, Marianne” está no primeiro disco dele, Songs of Leonard Cohen, de 1968 – e está também em praticamente todos os shows que ele veio fazendo ao longo destas décadas todas. Há no YouTube as mais diferentes versões da canção, cantadas por Cohen pelos quatro cantos do mundo. Em pelo menos um desses vídeos o velho bardo não disfarça e chora.

Uma foto de Marianne na casa deles em Hidra, sentada diante de uma máquina de escrever, ocupa toda a contracapa do segundo disco dele, Songs from a Room.

Há disponíveis na internet diversas, variadas, muitas fotos de Marianne, dos tempos em que viveram juntos. Algumas delas ilustram o livro Filhos da Neve, uma antologia poética de Cohen editada em Portugal em 1985. Duas delas estão na edição brasileira de I’m Your Man – A Vida de Leonard Cohen, a biografia escrita por Sylvie Simmons em 2012 (no Brasil, saiu em 2016, pela BestSeller). Na foto que está no alto deste post – tirada de The LIFE Picture Collection/Getty Images -. Marianne segura no colo seu filho com o escritor Axel Jensen. O casamento com Jensen acabou quando ela se apaixonou por Cohen.

Cada um foi para seu lado, é claro, mas de alguma forma permaneceram sempre próximos. Quando Marianne morreu, em julho deste ano, uma carta endereçada a ela foi lida no funeral. “Nossos corpos estão se separando, e eu acho que vou seguir você logo, logo.”

“I think I will follow you very soon.”

Não demorou sequer quatro meses para segui-la.

***

Então, so long, Leonard. Dê um beijo em Marianne por mim.

Se vir Regina e Suely, beije-as também, por favor, por mim e pelas meninas.

11 de outubro de 2016

Em julho de 2015, escrevi um longo texto sobre minha paixão pelas canções de Leonard Cohen. Não me lembrava dele: foi Mary que viu.

Aqui, um comentário meu sobre o filme  Leonard Cohen: I’m Your Man.

3 Comentários para “So long, Leonard.”

  1. Arrepiei! Que texto maravilhoso, comovente!
    E quanta informação ele contém.
    Uma homenagem belíssima.
    Nós leitores, só temos a agradecer…

  2. Me lembrei de você quando soube da morte dele.
    Como comentei num outro post hoje, que bom que ele se achava pronto para partir, creio que isso ajude.
    Uma estranha coincidência é que ele e Bowie tenham lançado seus discos e morrido praticamente em seguida, como se fosse esse último trabalho (ou a vontade de fazê-lo) que os estivesse segurando aqui.
    Minha música preferida dele é “Closing Time”, e falando em beleza, minha parte favorita é “I loved for your beauty but that doesn’t make a fool of me, you were in it for your beauty too.”
    Belo texto, o melhor de todos os que li.

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