Saudade verde musgo, úmida e pegajosa

Tem dia que parece que não vou aguentar esse turbilhão de sentimentos confusos e doloridos, aí escrevo. Colocando pra fora alivia algumas respirações.

“Pai, eu não sabia que você ia morrer. Não tô falando que não sabia que você ia morrer tão cedo e tão rápido. Eu não sabia que você ia morrer um dia! Eu achava que pais eram imortais. Eu sou uma criança ainda, e na cabeça de criança pais nunca morrem. Me enganei. Um engano doído.

Foi um susto, um choque. Desabei de um prédio de 190 andares e me espatifei no chão. Meus ossos estão todos quebrados e nem sei se consertarão um dia.

Queria poder dar mais um abraço. Um só. Um beijo. Dizer que te amo. Queria ter amado mais, como diz aquela música.

– Ame. Ame muito. Extrapole. Esse é meu conselho pra quem ainda economiza no sentimento. Quando as pessoas somem da sua sua vida sem aviso prévio, você nunca acha que amou o suficiente. –

Hoje acordo e durmo com a saudade. Uma saudade verde musgo, úmida e pegajosa. Ainda não é a saudade cor de rosa.

Ando por aí dando sorrisos que não querem sorrir, olhares que não querem olhar e suspiros que não querem, mas que precisam sentir essa dor.

Transito entre um cômodo e outro com a cabeça baixa e as costas curvadas, como se meu corpo não suportasse o peso da minha cabeça. Uma versão menina e (não tão) adulta do Charlie Brown, o Minduim de que você tanto gosta.

Minhas pernas estão inchadas e os pés pesados. Os passos letárgicos de que quem fez uma cirurgia pra extrair a alma. Deve ser retenção de líquidos. Sabe, às vezes choro pra dentro, tentando engolir o desgosto. As lágrimas escorrem por cada uma das minhas vísceras, inchando, pesando, retendo, contendo e inundando ao mesmo tempo.

É como se eu aspirasse uma fumaça morna e contínua, que tem começo e meio, mas nunca tem fim. Se tristeza tivesse forma, seria essa.

Minha filha, sua pinxesa, me chama pra brincar, mas quem é que consegue brincar, pular e rir com a morte ainda tão viva? Desculpe, eu não posso. (Sim, disfarço bem.)

A casa tá cheia de vazios. As suas séries, sem espectador. Seus livros, seus textos, seus tuítes. O lugar na mesa da sala, o cantinho do sofá, a música do Jornal Nacional, as mensagens apitando, as agulhinhas da diabetes, a melancia, o café das três. O nó na minha garganta.

Seria pedir demais que nos protegesse daí? Que me mandasse um sinal em forma de sei lá, borboleta colorida? me dizendo que tá tudo bem? Como tá a vida aí? Tem escrivaninha? Encontrou o Ademir? O Mike? Mazzoni? E a vó Doli que você perguntou ainda na UTI? O que foi aquilo? Ela tava lá mesmo? O que você lê aí? Deve estar de saco bem cheio das palavras piegas de elevação espiritual, né? Será que te deram aquele mamão que você me pediu um dia antes de partir? Espero que sim. Se reencontro houver, levarei mamão.

Todas as noites, inevitavelmente passo as cenas do hospital. As péssimas e as que te vi acordado, sentado, tomando sorvete e comendo aquela gelatina horrenda. Eu tava feliz. Você tava feliz. Estávamos todos felizes com a recuperação pós-cirurgia. O que foi acontecer, meu deus? Gastei toda minha fé nos dias que você voltou pra UTI. Apostei minhas fichas nos santos das causas impossíveis. Usei todos os pedidos que tinha por direito. Chamei todos os anjos de luz. Fiz promessas. Em vão. Com minha fé imatura, acreditei que poderia evitar o inevitável.

Me pedem pra não pensar nisso, mas como? Tá latejando, tá pulsando ainda.

Minha memória, sempre tão péssima, agora resolveu funcionar e um filme mal editado vai passando: o jornal, a praia de Bombinhas, Spiandorello, Ubatuba, o Palmeiras, festinhas de aniversário, mercadão de sábado, o Pavarotti, o roubo na farmácia (risos), Rio Sena e o Reali, bolo floresta negra, a festa a fantasia em Juquehy, a mãe, a tia, a Cuda, os amigos todos. Você tá em cada um deles. O Elói ligou no seu celular outro dia, acho que esqueceu. E eu fingi que não vi. O Serron, o Mitre, o Julio, Servaz, o Anélio, o Godoy, o Temis, o Pio, o Guima. Olho pra eles e te vejo. Meus olhos marejam.

Acordo no meio da noite com sobressaltos. É um pesadelo real. Me acalmo, puxo a coberta e choro baixinho. Tenho outro dia pela frente. Tenho a pinxesa, tenho meu caos interno pra organizar.

Respiro e sigo há quase um mês repetindo pra mim mesma: mais um dia.

Até eu esquecer de contar a falta e começar a contar só a presença.

Que chegue logo esse dia.

Com amor ansioso,

sua filha.”

Abril de 2016

Um comentário para “Saudade verde musgo, úmida e pegajosa”

  1. Vaia e a saudade que deixou. Algumas grandes, outras menores e esta especialmente linda, é que se pode chamar de linda a saudade.
    Presente o papai te ama prinxesa.

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