Os meus sentimentos

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Queria dizer os meus sentimentos, como se dizia, de negro, na aldeia beirã onde nasci. E são tantos os sentimentos. De admiração e orgulho por João Lobo Antunes, que nunca conheci. Dele sei esse desfile de méritos e talento que os jornais voltaram agora a publicar e que, por felicidade, ele escutou em vida com o pudor que era sua natureza.

Os meus sentimentos era o que gostava de dizer pessoalmente a António Lobo Antunes, mas não me atrevo que o conheço tão mal, só de o espreitar da minha janela do Conde de Redondo, quando vem sentar-se numa das três mesas que o modesto restaurante em frente põe no inclinado passeio da rua. Adormeço íntimo dele, agora que todas as noites leio Para Aquela Que Está Sentada No Escuro À Minha Espera, seu último romance. Mas acordo e regresso à timidez inaugural.

Queria dizer os meus sentimentos e calo-me mergulhando no mais bonito silêncio que já vi posto em palavras, a silenciosa crónica que Lobo Antunes, em 2008, dedicou ao irmão João. “E todavia quase não falamos”, escreveu António. É preciso ter nascido com um irmão para ser tão bonito, tão intensamente delicado, não se falar assim, com um amor que logo nos sufoca. Essa crónica é o filme de dois irmãos, o esboço de um filme de família e há nela um silêncio masculino de muda ternura, que invejo.

Quero dizer os meus sentimentos, como à porta da igreja da aldeia do Azinhal, onde os meus pais foram juntos a enterrar, e já me engasgo, atrapalhado com a solene reserva de António Lobo Antunes, a seriedade dos seus olhos azuis, a sua palavra exacta e parca. A valentia que nessa crónica exaltou no irmão João é, afinal, um bem de família, herança irrenunciável, valentia que se exerce contra o que não se estima, que estes dois irmãos para os amigos são cegos. E desejamos que dessa abençoada cegueira caia uma gota sobre nós para pertencermos aos happy few, aos incondicional e silenciosamente amados.

Ainda não disse os meus sentimentos e chego ao fim a lembrar-me de António Lobo Antunes a escrever, sem sequer mexer os lábios, “o meu irmão João para sempre”, e eu a pensar que a mais bela crónica de amor a um irmão, a um pai implacável cheio de orgulho, a uma mãe, que dizia-lhes a avó “um dia vocês matam a vossa mãe”, devia dar um filme português, se houvesse irmãos e pais e mães, um orgulho de família no cinema português. Nessa crónica, todos os sentimentos.

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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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