O colonialismo caiu na lama

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Caí. Foi a minha primeira queda dos 60 anos. Ainda ia no ar e já um coro impudico do passado me azucrinava os ouvidos com a velha frase que tanto cantei nos comícios do Lobito e de Luanda: o colonialismo caiu na lama.

Vou no ar, traído pela luz outonal das sete da tarde e por um disfarçado e mínimo degrau no amplo passeio em frente ao El Corte Inglés. E, apesar da traição espanhola, sei que não vou morder o pó do chão como Heitor abatido pelo fero Aquiles. Vou no ar e espera-me o seco embate contra a ladrilhada calçada portuguesa.

Como sempre que estou em crise, penso em futebol, nas asas dos melhores guarda-redes e já sei, como o famoso Damas sabia, que a esta bola de Eusébio jamais a agarrarei. Vou em voo e aterro. Carpo, metacarpo e dedos da mão direita suportam, como Hércules, todo o peso do mundo e da minha desamparada queda. A face lateral da coxa e o joelho da perna direita, solidários, absorvem a segunda vaga do terramoto: o colonialismo caiu definitivamente na lama.

Estou no chão, as retalhadas pedras da calçada vistas pela minha miopia em grande angular. Os meus vetustos 60 anos reprovam-me a ilusão do minuto que antecedeu a queda, os ténis ligeiros de Tom Cruise, as jeans apertadas em baixo que ficariam tão bem ao rabo de Marilyn, o pullover de James Dean. Essa réstia de ilusão juvenil está tão humilhada como prostrada no fresco chão de uma rua de Lisboa.

Não foi só a gravidade newtoniana que me abateu. Há também, nesta minha queda pós-colonial, uma gravitas fordiana. Tenho de passar a caminhar com a gravidade de John Wayne em The Searchers, pôr em cada perna a nostálgica e irrecuperável angústia do tempo que passou, pôr nos ombros a cautelosa descrença num futuro que não pode ser senão a vencida solidão do velho.

Volto a casa e bem quero descobrir em mim angústias de Aquiles, mas ninguém me roubou Briseida, a bela escrava, nem tombou morto nenhum Pátroclo amigo em batalha a que eu me tenha eximido. Resta-me ruminar humilhações e Hirudoid, regando a álcool e Betadine as escoriações da palma da mão.

Com que que alegrias poderei ainda sonhar? Como em Double Indemnity e Sunset Boulevard, de Billy Wilder, já só quero, um dia, abrir a porta de uma velhíssima mansão e, no raio de sol que comigo entrar, ver a suspensa poeira dourada flutuando no ar. Descuidada do tempo, eterna.

Corrigi aqui uma altíssima calinada anatómica, que me escapou no artigo do Expresso. Caí e fui de mãos ao chão. E não é que, na crónica, me queixo de ter suportado o peso do físico com tarso, metatarso e dedos, em vez de carpo, metacarpo e dedos! Ou seja, meti os pés pelas mãos. Hei-de redimir-me com crónica anatómica sem falhar um ossinho que seja. 

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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

The Searchers no Brasil é Rastros de Ódio.

Double Indemnity, Pacto de Sangue.

Sunset Boulevard, Crepúsculo dos Deuseus.

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