No coração do Rio

Como sempre fazia, entro na Da Vinci e vou até o fundo, para, antes de ‘viajar’ pelas prateleiras, cumprimentar dona Vanna. E quem encontro sentado em altas negociações com a livreira?  Luis Antonio, “sobrinho” querido, filho de amigos da vida inteira, então com menos de 15 anos, a negociar os pagamentos dos livros de Astérix que levava e dos que encomendava.

Fiquei parada, atrás dele, em silêncio, impressionada com a capacidade de negociação do garoto e, mais ainda, com o modo como dona Vanna lidava com o cliente, confiando na sua palavra e anotando, em um caderno, só o nome dele e suas encomendas.

Telefone? Endereço? Nome dos pais ou responsáveis? Não, nada disso foi necessário. Ali bastava a palavra do leitor. Que se tornou tão fiel que depois dos Astérix passou a comprar ali a série Dungeons and Dragons…

Terminado o assunto entre os dois, Luis Antonio se levanta e caminha tão apressado para a porta que nem me vê. Comento com dona Vanna meu espanto e pergunto se agindo assim ela não leva muitos prejuízos. E ela: “Poucos. De adultos. Mas de um jovem, menino ainda, que sabe muito bem o que quer e que é um leitor interessado no que lê… Não. Por esse ponho minha mão no fogo”.

Quem quisesse ler e precisasse pagar em mensalidades, tinha em dona Vanna uma aliada. Velho ou menino, não importava, importava que o leitor amasse os livros como ela os amava. Ali encontrávamos os últimos livros saídos na França e toda a coleção da Bibliothèque de La Pléiade, tentação que até hoje me fascina e que só mesmo em parcelas era possível comprar.

Dona Vanna amava ler. E transmitia esse afeto a quem a procurava. Foi Borges quem disse que imaginava o paraíso como uma grande livraria. Concordo com ele e digo mais: o meu céu se parece com as duas salas maiores da Leonardo da Vinci, abarrotadas de livros, com suas lombadas tentadoras como a nos dizer “me pega”!

A Leonardo da Vinci, assim como a finada Casa Crashley, faziam do centro do Rio a sucursal do paraíso. Na Crashley comprei os livros da Jane Austen que marcaram minha adolescência; foi onde conheci Agatha Christie, Somerset Maugham, Hemingway e Graham Greene.

Ontem li em O Globo que a filha de dona Vanna, Milena Duchiade, declara sua livraria “inviável”. Doeu. A Da Vinci atravessou um incêndio tenebroso, passou pela estupidez dos anos de chumbo. Giovanna Piraccini, italiana de Bolonha, com seu sotaque marcante, dizia, em alto e bom som o que pensava das dificuldades que os milicos impunham à importação de livros, não escondia de ninguém que nada é mais importante que a liberdade de escolha e que a censura é burra.

Mas a livraria não atravessa o que fazem com o Rio, que anda tão acabrunhado… Já perdemos tantas coisas. Noutro dia o Elio Gaspari pediu que alguém salvasse a Casa Daros, o belo casarão em Botafogo. Sugere que milionários brasileiros façam como os Gulbenkian, os Rockefeller, os Frick, os Wallace e se unam para salvar o museu.

Vou nas águas do excelente jornalista e sugiro: que tal os milionários (e temos tantos, não é? nunca tivemos tantos) se unirem e transferir a Livraria Leonardo da Vinci para a Casa Daros? Não vejo, em parte alguma, melhor acervo para aquele belíssimo casarão que os livros das prateleiras da grande livraria em perigo.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 29/5/2015.

2 Comentários para “No coração do Rio”

  1. Luis Antonio imune ainda a maioridade penal negocia seus livros com dona Vanna.
    O RIO realmente acabrunhado fica na expectativa de que os tantos milionários resolvam se apiedar da cultura e da tradiçao.
    Quem sabe uma lei que beneficie as livrarias, concedendo em troca,
    incentivos fiscais para as grandes fortunas.
    A cultura e a tradiçào nào podem infelizmente, como tudo, passar a depender de leis.
    Luis Antonio vai completar 16 anos, tomara que mais uma lei nào lhe tire a natural credibilidade,transformando-o em imputável.

  2. Na quinta-feira (28/5) , a livraria, localizada no Centro do Rio, nem parecia uma empresa que acabara de anunciar o fechamento de suas portas por falta de clientes. Pessoas de várias idades, de terno e gravata ou de bata indiana, percorreram os corredores e buscaram livros nas estantes da Da Vinci, talvez motivadas pelo saldão anunciado na véspera para vender os cerca de 100 mil exemplares do catálogo, talvez pelo sentimento saudosista de gerações cujo hábito de leitura foi formado lá.

    A livraria, que reúne há 63 anos obras nacionais e estrangeiras de todos os gêneros, foi a preferida de intelectuais cariocas ou visitantes, do modernista Carlos Drummond de Andrade ao punk Rogério Skylab, dois exemplos de poetas que citaram a Da Vinci em suas obras.

    A trajetória da livraria começou em 1952, no Edifício DeLamare, na Avenida Presidente Vargas, aberta pelo romeno Andrei Duchiade e pela italiana Vanna Piraccini, pais de Milena. Depois, em 1956, mudou-se para o subsolo do recém-inaugurado Edifício Marquês do Herval, na Avenida Rio Branco, um projeto de arquitetura modernista dos irmãos MMM Roberto, decorado com dois painéis de Paulo Werneck.

    O acesso ao subsolo, onde também se localiza o hall dos elevadores que levam aos 20 andares de escritórios, se dá através de uma rampa em caracol. Além da Da Vinci, funcionam lá duas óticas, uma casa de sucos, a livraria Martins Fontes, a livraria-sebo Berinjela, uma casa lotérica e um café – chamado Bistrô Vinci, para se aproveitar da fama do vizinho.

    A Da Vinci ocupa três lojas, uma do lado da outra, ligadas por pórticos em arco. Duas delas são próprias e uma é alugada. Há, também, uma quarta loja própria, fechada ao público, e outras três salas alugadas no edifício, que servem como depósito. No passado, a Da Vinci já teve filiais no Jardim Botânico e no Museu de Arte Moderna, chamadas Piccola Da Vinci, ambas hoje fechadas.

    O nome de batismo foi uma escolha de Vanna, pelo quinto centenário do pintor renascentista, celebrado em 1952.

    – Eu li tudo sobre Da Vinci no colégio. Ele era ímpar – conta Vanna, hoje com 89 anos de vida e quase 70 de Brasil, mas ainda com um sotaque carregado.

    Casados na Romênia, Vanna e Andrei vieram para o Rio em 1948, seguindo os conselhos de um parente, para, como ocorreu com tantos imigrantes europeus, fugir da desolação pós-guerra.

    – Comecei a frequentar a Da Vinci no início dos anos 1960. Foi através da livraria que eu recebia a “Cahiers du Cinéma” – conta o jornalista e escritor Sérgio Augusto. – Lembro bem da Dona Vanna e de seu marido. Ele era uma figura meio sartriana, de óculos. E ela já era antenadíssima. Se saía algum livro, ela já sabia tudo sobre ele.

    Andrei morreu em 1º de junho de 1965, há 50 anos, cinco décadas antes do anúncio do fim de sua livraria, por um choque anafilático, provavelmente provocado por picadas de abelha. Ele tinha apenas 44 anos e deixou Vanna viúva com dois filhos para criar e uma livraria em crise financeira para dar conta. Foi a primeira tragédia da história da Da Vinci.

    A segunda aconteceu em 1973. Um incêndio que se iniciou na antiga boate Tropicália se alastrou e destruiu toda a livraria. A causa do fogo nunca foi descoberta, mas a principal suspeita de amigos e frequentadores é que se tratou de um incêndio criminoso, motivado por questões políticas num ano em que o Brasil vivia sob a ditadura militar.

    A reconstrução foi tocada por Vanna. Tudo lá, do relacionamento com os clientes à compra dos livros, era tocado por Vanna.

    – Dona Vanna é extraordinária. Certa vez, vi uma edição holandesa do léxico espinozano na vitrine e fiquei encantado. Quando estava comprando, ela apareceu e lamentou: “Ah, não! Já vão levar o livro que eu acabei de botar na vitrine?”. Isso mostra bem seu amor pelos livros – conta o poeta Antonio Cicero, que dedicou o poema “A cidade e os livros” a Vanna.

    ‘Tenho 89 anos, dá tempo de mudar a rotina’

    O fechamento da Leonardo da Vinci, segundo Milena Duchiade, foi uma consequência da disputa por leitores com as grandes redes de livrarias e com a internet, e também das obras no Centro, que dificultaram o acesso dos clientes. A ideia é vender os livros do estoque com descontos nos próximos meses, para, depois, tentar vender os imóveis.

    Enquanto isso, velhos clientes e até mesmo concorrentes lamentam.

    – Quando comecei a trabalhar com livrarias, em 1975, a Da Vinci era nosso modelo. E lá se vão 40 anos. Ela pairava em meu imaginário – diz Rui Campos, sócio da Livraria da Travessa.

    O escritor e crítico literário José Castello se lembra quando, nos anos 1970, entrou na Da Vinci e roubou um exemplar de uma obra de Michel Foucault.

    – Um segurança me pegou na Rio Branco e me levou para a dona Vanna. Achei que seria preso, mas ela sugeriu um acordo: eu levaria o livro por empréstimo e traria no mês seguinte.

    Vanna continua frequentando a Da Vinci quase todos os dias, de segunda a sábado. Ela fica sentada numa grande mesa, recebendo clientes e conversando sobre livros. Sobre o futuro, ela lamenta, assume sua tristeza, mas olha adiante:

    – Tenho 89 anos, dá tempo de mudar a rotina. Acho que vou fazer trabalhos de caridade. Só não vou deixar de ler.

    ***

    por André Miranda e Mateus Campos, em O Globo.

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