F?

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Kafka, nome impos­sí­vel de duas con­so­an­tes e uma vogal; Kafka, len­ga­lenga infan­til a que só um insi­di­oso F evita a ridí­cula caco­fo­nia, pro­ta­go­ni­zou uma ini­ma­gi­ná­vel pai­xão. O autor de A Meta­mor­fose amou à maneira dos fil­mes a que tanto ia, como mos­tra Hanns Zis­ch­ler no docu­men­tá­rio Kafka goes to the movies.

De Praga a Ber­lim são dois pas­sos e foi quando os deu que Kafka encon­trou Felice Bauer, este­nó­grafa ber­li­nense, dora­vante F, amiga de Max Brod, amigo do F entre kapas que por acaso era Kafka.

F e F fala­ram toda a noite. De olhos nos olhos pou­cas vezes vol­ta­ram a estar jun­tos. O que não impe­diu que, de 1912 a 1914, Kafka lhe escre­vesse três car­tas por dia. Por­me­nor de filme: F, por acaso Kafka, envi­ava as car­tas para a empresa onde este­no­gra­fava F, fin­tando a vigi­lân­cia da mamã da nubente, inde­se­jada lei­tora que se ofen­dia com os exces­sos de tanto F.

Kafka expu­nha, à letra e com ful­gor cine­ma­to­grá­fico, o seu dilema – o sexo. Em 500 car­tas, o checo F expli­cou à ber­li­nense F que o coito era pouco mais do que “a puni­ção pela feli­ci­dade de estar­mos jun­tos”. Ora, F!

Fica­ram noi­vos, os dois F, F de Felice, F de Franz. F veio a Ber­lim pronto para a festa, que se con­ver­teu num jul­ga­mento fami­liar do F de Franz. F ras­gou o com­pro­misso. Com a famí­lia vin­di­ca­tiva estava a melhor amiga de F de Felice, Grete Bloch, sem F que se veja, mas que se diz ter sido mãe do filho cujo puta­tivo pai seria o nosso F. Lúbrica vin­gança de F?

Estava nas car­tas que F e F não se jun­ta­riam. Quando F disse a F que que­ria casar, os ter­mos não foram exal­tan­tes: “Casa-te comigo e vais lamentá-lo. Não te cases comigo e hás-de lamentá-lo. Cases ou não te cases comigo e vais lamentar-te, não importa o que esco­lhas.” F de Felice fugiu, claro, a sete pés deste apo­ca­líp­tico F, que era só capaz de jurar e pro­me­ter que, jun­tos os F, seriam infe­li­zes para sempre.

Fica­ram 511 car­tas que F de Felice, sem que o outro F con­sen­tisse, publi­cou. E fica­ram, des­ses dias, três geni­ais fic­ções que F escre­veu enquanto pen­sava que F em F pudes­sem ser um só F: A Sen­tença que dedi­cou a F, a Meta­mor­fose e o Pro­cesso. Bem se vê o que à F ber­li­nense F deve, e o que nós e a lite­ra­tura do mundo todo sería­mos se em cada livro não hou­vesse o que de algum F cada F espera.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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