De cabeça para baixo

Na série de TV Isabel, rainha de Castela, que o canal pago Globosat está exibindo diariamente, o navegador genovês Cristóforo Colombo tenta convencer Sua Majestade a financiar seu projeto de descobrir o caminho das Índias.

Ele mostra à rainha cartas de navegação fraudadas e falsificadas tentando convencê-la dos fundamentos infalíveis de seu projeto, e aparece com um globo terrestre na mão, para comprovar que a Terra era redonda e que através do Atlântico chegaria ao seu destino.

O projeto de Colombo era recolher o ouro e a riqueza de terras ainda não conquistadas, mas para ganhar a simpatia da rainha católica foi aconselhado a enfatizar que sua missão principal era a de espalhar a fé cristã por terras desconhecidas. A rainha aprovou a história da fé, mas por via das dúvidas não esqueceu de perguntar se aquela missão iria também ajudar “as arcas do Reino”.

Andando com aquele globo na mão, na época em que ainda se acreditava que a terra era plana, a rainha de Castela se perguntava, olhando para a parte de baixo do globo, como é que as pessoas que estavam lá conseguiam andar de cabeça para baixo e não caiam no espaço infinito.

Quem, quando criança, em algum momento, não teve essa dúvida maluca?

Há mais de 500 anos existiram Isabel e Fernando, reis de Castela e Aragão o navegador genovês Cristóvão Colombo, e a América foi descoberta.

Há ou não há um leve e melancólico tom de ridículo envolvendo essa metáfora do mundo de cabeça para baixo que intrigava Isabel de Castela?

A América, historicamente jovem, tem um quê de patafísico (a ciência das soluções imaginárias), um quê de surrealismo (no sentido que lhe dava André Breton, seu idealizador, como uma espécie de expressão do sonho, do instinto e do desejo, deliberadamente incoerente) e um quê do realismo fantástico (elementos mágicos ou fantásticos tratados como normais na narrativa).

Na Macondo venezuelana, o povo foi chamado a dizer nas urnas o que pensa do bolivarianismo de pajaritos, e tomou a Assembléia Nacional dos esbirros do patético Maduro por mais de 30% de votos de diferença. Problema nenhum nesse mundo de cabeça pra baixo. El señor governante resolveu a pendência salomonicamente: monte-se outra assembleia, essa inteirinha dele, e deixem de atrapalhar a marcha para o futuro. Como ninguém tinha pensado nisso antes?

No Brasil, uma obscura juíza de Direito do interior se achou investida de poderes divinos e suspendeu por 48 horas a comunicação via WhatsApp entre milhões de pessoas que usam o aplicativo como recreação ou instrumento de trabalho. A medida da onipotente de subúrbio foi revogada algumas horas depois, mas deixou sua marca para a história das iniquidades.

É neste pedaço de mundo também que aqueles que o polonês Czeslaw Milosz, Nobel de Literatura de 1980, chamava de “universo de sombras ambulantes”, tenta dar vida nova a velhos fantasmas que jazem no subconsciente, imaginando forjadores de rios de leite e mel onde só existem quadrilhas de aproveitadores vulgares.

No globo que o navegante genovês deu de presente a Isabel de Castela pode acontecer de tudo, mas as pessoas de cabeça para baixo não cairão e nem se perderão no espaço infinito. Como os juízes do Supremo decidiram ontem, sempre haverá quem esteja disposto a ajudar a lei da gravidade a manter cada coisa em seu lugar, mesmo que esse lugar seja o inferno.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 18/12/2015. 

Um comentário para “De cabeça para baixo”

  1. O mundo representado pelo globo situa o inferno a partir do ponto de vista de cada um. A gravidade da lei está está exatamente na contraposição ao julgamento da obscura juíza de interior anda na exposição crônica de bom jornalista que situa o inferno a partir de seu ponto de vista. Cada um cumpre seu papel com ajuda da lei da gravidade. Até onde a política poderia interferir nas leis da física? Até onde poderíaemos situar o inferno e o céu?

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