Caiu na real?

Até ontem se vendiam ilusões. De forma exaustiva, a presidente Dilma Rousseff repetia: a crise é passageira e a retomada do crescimento se dará logo, logo. No máximo, admitia 2015 como o ano da “travessia”. Tudo, no entendimento do governo, era uma questão de vontade política, como se a economia fosse movida pela fé.

Não faltaram alertas, mas a presidente e sua equipe continuaram a viver em um universo próprio, vendendo uma imagem de um Brasil inexistente e creditando a ela e aos seus, o dom da infalibilidade.

Propositadamente, estabeleceram o anátema e interditaram o debate econômico, taxando de pessimista e de torcer contra o Brasil, quem não rezava por sua cartilha. Mensagem, aliás, que Lula e Dilma fizeram questão de transmitir nas inserções televisivas do PT que foram ao ar no último sábado.

De repente e meio contrariada, Dilma dá o braço a torcer e admite que durante a campanha eleitoral errou na avaliação da crise econômica, demorando a perceber sua gravidade.

Aqui surge um primeiro problema: a letargia do seu governo.  Afinal, como explicar a nós, simples mortais, que só agora Dilma descobriu que um ministério mastodôntico, com 39 cadeiras, é um prêmio à ineficácia?

Mesmo desconsiderando a demora da presidente para enxergar o que todo mundo já via, resta a questão principal: os brasileiros podem respirar aliviados porque, finalmente, a primeira mandatária do país teria caído na real?

Óbvio que não. Como deixou claro em sua entrevista aos três principais jornais do país, a presidente continua a atribuir ao fator externo, à queda das commodities, a causa da crise. Não há, note-se, a mais leve referência ao desastre da “nova matriz econômica” adotada em seu primeiro mandato.

A crise, no entendimento presidencial, é culpa dos Estados Unidos, da União Europeia e, agora, da China. O máximo de erro que a presidente admitiu foi o de não ter percebido que os tempos da “bolha das commodities” já tinham passado e só ela, debruçada na janela, não viu.

Não viu e não ouviu. Nem as críticas quase unânimes dos analistas econômicos nem o seu ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega, que vive se queixando pelos quatro cantos de ter, por diversas vezes, chamado a atenção da presidente sobre a necessidade de reajustar os preços da gasolina e da energia, de conter os gastos públicos. Mas ela simplesmente fazia ouvidos de mercador.

O primeiro dever de um governante é enxergar a realidade tal qual ela é. Só assim poderá agir para modificá-la.  Dilma poderia ter economizado tempo e milhares de reais dos brasileiros.

Deveria ter observado o crescimento de moradores de ruas, de vendedores ambulantes em semáforos e das novas favelas que surgem a cada dia. Bastaria uma passadinha na feira, em um supermercado; andar pelas ruas e ver dezenas de pequenos negócios dando lugar a placas de aluga-se.

Há tempos o Brasil paga o preço da ficha que só agora Dilma admite que caiu.

Se é que caiu mesmo.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 26/8/2015. 

2 Comentários para “Caiu na real?”

  1. “Só por hoje” é um princípio seguido à risca por alcoólicos anônimos, com resultados comprovados. Mas pode ser um mantra, também, contra qualquer tipo de vício. A ideia, simples, é dar um passo de cada vez. A cada 24 horas, uma batalha vencida. Os movimentos conhecidos por AAA – Associação dos Alcoólicos Anônimos –, surgidos na década de 30, nos Estados Unidos, e que se espalharam pelo mundo, praticam o lema ainda nos dias atuais, com bons resultados.
    Sem abdicar dos antigos, novos vícios têm sido incorporados à sociedade, como a compulsão pelo uso de aparelhos celulares. Há outros igualmente perniciosos: o vício por consumir informação de péssima qualidade, inclusive nas redes sociais, e o vício de entreter-se com programas de rádio e tevê que atrofiam a inteligência e a capacidade de análise. Incluem-se nesse rol comentaristas famosos de diferentes mídias.
    Talvez, justamente por isso, as redes sociais estejam entulhadas de diálogos e debates de baixíssimo nível, em que os xingamentos e a desinformação sejam moeda corrente. E que, não raro, descambam para um superávit de ódio e um déficit de solidariedade. Graças às redes sociais, descobrimos que aquele cidadão que parece tão fino e educado, cheio de gentilezas e que aparenta ser adepto de causas nobres, na verdade esconde um troglodita, machista, reacionário, egoísta, homofóbico, desinformado e mal-educado. Não necessariamente nessa ordem.
    Por isso, para pôr um pouco de água na fervura e, quem sabe, serenar os ânimos, pensei em resgatar o lema que tem mantido longe do vício tantas pessoas que, no passado, estiveram às portas do inferno. Se não nos levar ao céu, pelo menos poderemos viver e dialogar mais civilizadamente.
    Então…
    Só por hoje não chamarei de petralha ou de coxinha nenhum de meus adversários políticos e ideológicos. Categorizar conceitos pejorativos e reducionistas em nada colabora para a tentativa de manter um diálogo com respeito. Para aqueles casos em que a recíproca não for verdadeira, mantenha-se afastado. Não perca seu tempo.
    Só por hoje não xingarei, não usarei palavrões, nem tentarei ganhar no grito um debate que só tem sentido quando houver argumentos e informações fidedignas e sensatas sobre aquilo que se procura demonstrar. Ou seja, vale a pena fazer um esforço para diversificar as fontes e informar-se melhor sobre o que acontece no país e no mundo.
    Só por hoje não direi que “é tudo culpa da Dilma”, seja lá o que aconteça no país. Afinal, vivemos numa República Federativa e as principais instâncias de poder são o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, que, por sua vez, operam nas esferas federal, estadual e municipal. Farei um esforço para lembrar que a responsabilidade precisa ser dividida no mínimo com mais 27 governadores, 5.570 prefeitos, 81 senadores, 513 deputados federais, 1.059 deputados estaduais, cerca de 60 mil vereadores e 20 mil juízes espalhados por todo o país. Sem falar em milhares de importantes entidades representativas dos mais diversos setores da sociedade.
    Só por hoje não direi que esquerda e direita são “tudo a mesma coisa”. Para esclarecer melhor tudo aquilo que não compreendo muito bem, melhor começar por ler o livro clássico de Norberto Bobbio sobre o tema. Há outros igualmente bons, é só procurar.
    Só por hoje não direi que a política e todos os políticos não prestam e procurarei estudar um pouco mais, sobretudo ciência política, história e sociologia, para tentar entender as engrenagens do poder e, quem sabe, a partir daí, contribuir decisivamente para a criação de políticas públicas que visem ao bem comum, ao bem-estar coletivo.
    Só por hoje não direi que a política de cotas (políticas afirmativas) é uma injustiça e vai prejudicar a qualidade do ensino. Primeiro, comprometo-me a ler com mais atenção a história dos negros no Brasil e, na sequência, divulgarei as pesquisas que demonstram que a maioria daqueles que entraram por cotas nas universidades brasileiras tem um desempenho igual ou superior aos que acessaram o ensino superior por outros meios.
    Só por hoje não vou converter-me à ideia de que problemas de segurança pública devem ser resolvidos à bala. Consultarei a vasta bibliografia sobre o assunto que desmente, categoricamente, a ideia de que a ênfase na repressão e a criação e manutenção de um sistema de segurança baseado na discriminação possam pôr um fim à violência.
    Só por hoje evitarei o uso de falas e comportamentos machistas, para que a relação entre duas ou mais pessoas seja sempre baseada na igualdade, na dignidade e no respeito às diferenças. Igualmente repudiarei os estereótipos machistas da publicidade e me posicionarei contra atitudes cotidianas que reforçam esses hábitos.
    Só por hoje não reclamarei do engarrafamento no trânsito se estiver sentado em um automóvel. Afinal, concluirei, é a minha presença ali, juntamente com milhares de outros condutores de automóveis, a razão de um trânsito que não anda. Aproveitarei o tráfego parado para refletir sobre a importância de apoiar a construção de ciclovias e dar prioridade ao transporte público de qualidade.
    Só por hoje não vou ridicularizar e hostilizar pessoas com preferências sexuais diferentes da minha. Tentarei compreender que o desejo sexual independe de gênero e que não há nada errado nisso, ao contrário da homofobia. Se persistirem os sintomas homofóbicos, procurarei ajuda. Talvez Freud explique.
    Só por hoje buscarei novas formas de me manter informado, diferente das fontes habituais, para que não me torne refém de interesses particulares, não raro economicistas, que favorecem grupos minoritários, e que, no entanto, se apresentam como porta-vozes de interesses justos e igualitários.
    Só por hoje não acreditarei que recentes investigações sobre ilícitos sejam parâmetro para afirmar que “nunca houve tanta corrupção no país”, sem questionar primeiro por que antes essas investigações eram tão raras e por que, ainda hoje, o mesmo dinheiro que foi distribuído aos principais partidos, por diferentes setores empresariais, é considerado ilegal para uns e absolutamente honesto e sem problema para outros?
    Só por hoje entenderei que, num estado laico, como é o caso do Brasil, política e religião não se misturam e credos particulares não podem ser aceitos como objeto de leis e normas para o conjunto da sociedade.
    Só por hoje, cada vez que começar uma reclamação contra os altos impostos cobrados pelo governo federal, tentarei lembrar-me de que alguns dos principais impostos que me afetam diretamente, como o ICMS, o IPVA e o ISS são impostos estaduais e que o IPTU é um imposto municipal. E decidirei reclamar, com a mesma intensidade, da sonegação de impostos, que desvia bilhões de reais que fazem falta às políticas públicas do país. De bônus, investigarei por que as camadas mais ricas pagam, proporcionalmente, tão poucos impostos no país, ao contrário do que acontece em nações sempre citadas como exemplo de sociedades desenvolvidas.
    Só por hoje evitarei falar e publicar nas redes sociais a primeira ideia que me vem à cabeça, sem refletir, inicialmente, se não estou reproduzindo aquilo que me foi incutido por veículos de comunicação e instituições da sociedade com interesses muito particulares, tendo como resultado um pensamento que não é necessariamente meu, mas orientado para reproduzir conceitos que interessam a outros, sem que eu nunca tenha me dado conta, ainda, disso. Como antídoto, buscarei bons livros e boas fontes de informação e conhecimento, na tentativa de me “deseducar” um pouco e compreender que o mundo e as relações podem ser muito diferentes do que hoje são e que mudar isso não é uma impossibilidade.
    Só por hoje, não repetirei ideias-clichês do tipo “no Brasil não tem racismo”, “só é pobre quem não trabalha”, “direitos humanos só servem para proteger marginais”, “na ditadura era tudo melhor, não tinha corrupção”, “negros também têm preconceito contra os brancos”, “o mensalão é o maior escândalo de corrupção da história do país”, “político é tudo ladrão”, “tudo que é público não funciona”, “o mercado regula”, “o mundo está cada vez pior”, “no Brasil nada dá certo”, “bandido bom é bandido morto” etc. etc. Se quero compreender os fenômenos sociais, prometo, vou estudar e ler – ler muito –, para não dizer bobagens inconsistentes.
    Só por hoje.
    Celso Vicenzi
    Celso Vicenzi é jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas/SC, Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia (1985). Atuou em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Autor de “Gol é Orgasmo”, editora Unisul – ilustrações de Paulo Caruso. Escreve humor no tuíter: @celso_vicenzi. Para contato: vicenzi@newsite.com.br

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