“Bem-aventuradas as pessoas de bom texto”

“Tomou o rumo da Praça Júlio Mesquita. Ali estava o Filé do Moraes, onde tantas vezes jantara com amigos de sempre e amigas de ocasião.”

A frase, estupenda, maravilhosa, está colocada, como se fosse absolutamente normal, no meio do segundo capítulo de Quando os Repórteres Usavam Revólveres, a sensacional novela que Valdir Sanches escreveu faz tempo, redescobriu há pouco, Mario Lúcio Marinho publicou na sua revista eletrônica JT Para Sempre e estou republicando agora no 50 Anos de Textos.

Li a novela inteira muito tempo atrás, nem me lembro quando. Valdir tinha achado entre sua papelada, me deu uma cópia, sei lá. Me lembro muito pouco da trama – tenho lido capítulo por capítulo, na hora de botar o post semanal no ar. É uma novela deliciosa. Valdir, jornalista de primeiríssima, sabe ser autor de ficção brilhante.

E é óbvio que o admiro por isso, assim como admiro nosso amigo Anélio Barreto, outro grande jornalista que sabe criar belas histórias de ficção.

Tenho profundo respeito e admiração por quem sabe criar histórias, quem tem imaginação para inventar coisas que não se passaram. Eu não sei, eu não tenho. Quando era muito garoto, ali entre os 14 e os 16 anos, até que tentei: escrevi três ou quatro noveletas – porcarias incomensuráveis. Tão porcarias, e tão incomensuráveis, que jamais tentei escrever ficção de novo.

Uma vez fiz um texto contando sobre meu primeiro patrão, o Seu Rona, Vojtech Rona, quando eu tinha 16 anos. Reconstituí o que me lembrava daquela minha experiência, e inclui o fato de que eu e a empregada da casa do Seu Rona demos uns amassos. Valdir leu o texto e – tal qual um editor profissional de grande editora nova-iorquina – me encorajou a descrever em maiores detalhes os amassos do rapaz com a mocinha enquanto os patrões não estavam nos observando.

Respondi, candidamente, que não conseguia me lembrar de qualquer outro detalhe – e que não seria capaz de acrescentar detalhes fictícios, porque aquela era uma narrativa de episódios reais da minha vida.

Sou um aprisionado pela realidade dos fatos. Sou tão incompetente como ficcionista que não consigo sequer botar umas cerejinhas no bolo de uma história real.

Mas sou, de qualquer forma, um homem de texto. Vivi praticamente a vida inteira, paguei todas as minhas contas, juntei dinheiro para me aposentar apenas por dominar o ofício de juntar uma palavra a outra.

Assim, por ser apaixonado pelas palavras juntadas a palavras, fico absolutamente encantado diante de frases brilhantes como “onde tantas vezes jantara com amigos de sempre e amigas de ocasião.”

E aí pus no Facebook um post chamando para o segundo capítulo da novela policial do Valdir:

Já está no ar o segundo capítulo de “Quando os Repórteres Usavam Revólveres”, a novela policial – de época e bastante noir – de Valdir Sanches.

Como quem não quer nada, lá pelo meio do capítulo, o sujeito me comete o seguinte:

“Tomou o rumo da Praça Júlio Mesquita. Ali estava o Filé do Moraes, onde tantas vezes jantara com amigos de sempre e amigas de ocasião.”

Como dizia Regina Lemos, ela mesma um texto excepcional: bem-aventuradas as pessoas de bom texto.

Pois é. Regina Lemos.

***

Foi só depois que postei no Facebook essa chamada para o segundo capítulo da novela do Valdir que me lembrei de um jantar ali mesmo, exatamente no Filé do Moraes, na Praça Julio Mesquita, com Regina Lemos, Moisés Rabinovici e alguns outros amigos – muito provavelmente lá estavam também Sandro Vaia, Anélio Barreto, talvez Bob Jungmann.

Não consigo me lembrar por que raios fomos todos nós, que deveríamos estar fechando o Jornal da Tarde naquele horário, parar no Filé do Moraes, num dia de semana. Me lembro muito bem é que fomos jantar lá depois de vermos, todos nós, o grupo inteiro, O Inquilino do Polanski, no vizinho Cine Metro, na Avenida São João tão presente na novela do Valdir.

Não sei fazer ficção, sou estritamente ligado à realidade dos fatos. Fui agora checar minhas anotações sobre os filmes que vi – e o que está lá, nos filmes de 1976, é que vi O Inquilino no Cine Metro, mas não há a data exata. Foram tempos absolutamente perturbadores, perturbados – tanto, mas tanto, que não consegui sequer fazer direito as anotações dos filmes que via, no meu caderno de filmes.

A memória não ajuda muito. Tenho a lembrança clara de que ver O Inquilino me deixou impressionado demais; tenho a lembrança clara de que cheguei ao Filé do Moraes, depois de ver o filme, bastante chapado, como se tivesse fumado um baita bob marley – embora eu jamais tivesse fumado sequer um micro bob marley.

Naquele ano de 1976, meu irmão Arnaldo morreu, da maneira mais estúpida possível, e eu catei uma trouxinha de roupa e casquei fora do meu casamento e da minha filha  para viver a paixão por Regina Lemos. Mas não consigo me lembrar se naquela noite em que vimos O Inquilino do Polanski no Cine Metro e em seguida fomos jantar no Filé do Moraes Regina e eu ainda estávamos nos prolegômenos ou já tínhamos ido para os fatos consumados.

Não que isso tenha qualquer importância.

É só que gosto de lembrar dela, e a saudade não acaba nunca.

Quando o casamento com ela estava se desfazendo, ou praticamente já estava desfeito, Regina flagrou uma dedicatória em um livro – um textinho infantil, chinfrim –, feita para mim, por uma namorada extremamente bela. Foi cruel: deixou bilhete que terminava afirmando que bem-aventuradas são as pessoas de bom texto.

Poucas vezes ela deu demonstração de ciúme de forma tão brava.

 Maio de 2015

3 Comentários para ““Bem-aventuradas as pessoas de bom texto””

  1. Seriam os bons textos diretos e objetivos? Ou seriam aqueles subjetivos e que nos levasse a ler nas entrelinhas? O texto me remete a leitura de um amor para sempre, destruidor e arrasador, amor para sempre, definitivo, daqueles dos quais nos arrependemos mas que sempre deixou saudades e marcas indeléveis.

  2. Sérgio,ter um amigo como você é tirar na sorte grande. Não encontro mais para dizer.
    Tenho uma sugestão para você se achar na ficção. Um garoto vai ao cinema pela primeira vez e fica de tal forma impressionado que faz anotações sobre o filme. Não quer esquece-lo pelo resto da vida. No segundo filme, lá estão papel e caneta em suas mãos. No terceiro, no quarto… passa uma vida assim. Adulto, crítico de cinema, tem um caderno de anotar filmes. Que história, sô. É só pôr no papel.

  3. Também expressei a minha inveja num comentário lá no post do segundo capítulo, Sérgio. E deve ser ressaltado que, além de criar personagens marcantes, ele utiliza muito bem o humor e as técnicas de suspense. Mal posso esperar para descobrir quem matou la belle de jour.

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