Ainda e sempre os suportes físicos

Nesta segunda-feira de carnaval voltei pra casa com um monte de suportes físicos, essa coisa em extinção.

Meu principal objeto de desejo era o disco Dylan canta Sinatra. Tinha uma obrigação, ir a uma loja da Comgás, e sabia que no prédio da loja, ao lado do Trianon, na diagonal do Masp, havia uma loja de discos, uma das últimas que existem na maior cidade da América Latina.

zzzzsuporte1Resolvemos em parte as obrigações na Comgás, atendidos por uma funcionária estupidamente simpática chamada Camila, e aí fomos atrás da loja de discos. Tudo na galeria gigantesca, de dois andares, do prédio número 1499 da mais paulista das avenidas, estava fechado – com exceção da loja da Comgás e do Museu do CD.

Entrei no Museu do CD dizendo para o senhorzinho que estava no caixa que eles estavam duas vezes de parabéns. A primeira, por existir, por resistir, por não ter fechado ainda – e a segunda por estar funcionando numa segunda-feira de carnaval. O senhorzinho, especialmente simpático, agradeceu e explicou que ele estava ali tomando conta da loja para o amigo dele que é o dono.

O Museu do CD é uma maravilha porque ainda existe, e porque funciona até mesmo numa segunda-feira de carnaval – agora, Dylan canta Sinatra e The Art of Paul McCartney, não, isso eles não têm, não, senhor.

Decidi comprar alguma coisa ali, fosse qual fosse, simplesmente porque a loja ainda existe. Comprei uma Amy Winehouse, Back to Black. Jamais tive um disco de Amy Winehouse na vida; amigos e conhecidos a adoram e já me aconselharam a prestar atenção a ela, mas acho que jamais ouvi uma música inteira dessa moça que fazia tanto esforço para ser feia. Outro dia comprei o Olhos de Onda, o disco de 2014 da Adriana Calcanhoto, ao vivo, e no meio do disco, e acredito portanto que tenha sido no meio do show, Adriana canta exatamente “Back to Black” – e aí, pela primeira vez na vida, fiquei curioso por saber exatamente que apito tocava Amy Winehouse.

O senhorzinho do Museu do CD nos confessou, candidamente, que fomos os únicos compradores do dia, até ali – e o dia já estava terminando.

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zzzzsuporte2Na Livraria Cultura, a lojona que ocupa o que antes era o Cine Astor, me espantei com a bagunça dos CDs. Não havia qualquer tipo de ordem alfabética. Como achar o Dylan Canta Sinatra e o Todos Cantam Paul se não há nada em ordem alfabética? Eu já pensava em ir embora quando Mary, sempre mais lúcida, mais inteligente, mais calma do que eu, conseguiu achar  um dos raros funcionários da Cultura disponíveis ali.

O rapaz foi brilhante. Achou o suporte físico Dylan Canta Sinatra, achou o suporte físico Todos Cantam Paul, e ainda botou nas nossas mãos o mais recente Leonard Cohen.

Meu Deus do céu e também da terra: o Dylan 2014, o Cohen 2014, e o Todos Cantam Paul 2014!

Mary já tinha pego o DVD da primeira temporada de House of Cards – a primeira série de TV que nasceu sem suporte físico, sem sequer ser exibida em rede de TV.

Mary é moderna, eu sou pré-antigo.

Ví lá uma nova coleção de filmes clássicos, a preço promocional, e catei, sem pensar no vermelhão eterno da conta do banco, dois Elia Kazan (o primeiro dele, A Tree Grows in Brooklyn, e nada mais nada menos que America America) e mais um John Huston de 1948, Key Largo, com Bogey e Bacall, e As Chaves do Reino, com Gregory Peck no papel do jovem médico criado por A. J. Cronin, que li ainda adolescente.

Mais ainda: comprei o Movie Guide 2015 de Leonard Maltin. Em dezembro, um mês e meio atrás, tinha comprado o 2013. Sabia que era besteira, que deveria esperar um pouco mais e comprar uma edição mais recente. Paciência.

O Movie Guide 2015 tem uma informação chocante, apavorante. Vou falar disso num outro post.

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zzzzsuporte5Acho o maior barato tudo isso. Acho uma maravilha eu ainda comprar suportes físicos para uma casa em que simplesmente não cabe mais sequer uma agulha, numa época em que ninguém que pense um pouquinho compra mais suportes físicos.

Suportes físicos para quê? Está tudo na rede, grátis. Na rede, na nuvem. Na mão, grátis.

Dias atrás O Globo – ou teria sido a Veja? Não importa. Um desses dois trecos que vão acabar em breve na sua forma de suporte físico deu uma materinha sobre algumas coisas que vão desaparecer em breve, e acho que todas elas eram suportes físicos de carregar coisas virtuais – o CD-ROM, o pen-drive, o hard disk externo.

No maravilhoso mundo novo que se avizinha, não há espaço para nenhum tipo de suporte físico – sequer para um mínimo pen-drive, o suporte físico que a Lucy de Luc Besson, interpretada por Scarlett Maravilha Johansson, usa para guardar todo o conhecimento que a humanidade acumulou até agora e repassa para o cientista interpretado por Morgan Freeman.

Pintam um mundo total, absoluta, resolutamente sem qualquer tipo de suporte físico. Tudo ficará na nuvem.

Ninguém explica o que a humanidade fará caso – como Wim Wenders antecipou em seu Until the End of the World – falte energia.

Caso por alguns minutos venha a faltar energia, como farão as pessoas sem qualquer tipo de suporte físico, tudo o que elas conhecem na vida jogado na nuvem?

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No nosso passeio pela Paulista, Mary perguntou a um rapaz da loja exclusiva da Companhia das Letras (onde comprei pela segunda vez um exemplar de A Balada de Adam Henry, este para dar de presente para minha filha, juíza ajuizadíssima como Fionna Maye, a protagonista da história de Ian McEwan) por livros de Tess Gerritsen. O rapaz, com muita paciência, fez uma busca no computador e disse que os livros da autora estão agora fora de catálogo no Brasil, que só conseguiríamos através de sebos.

Naquela loja da Companhia das Letras da Cultura no Conjunto Nacional, Mary viu maravilhosos livros que deveríamos ter quando Marina estiver mais velha. Um era uma edição maravilhosa de histórias/fábulas de diversas partes do mundo; outro eram fábulas de Esopo; outro eram histórias tradicionais brasileiras recontadas por Ana Maria Machado.

Depois que saímos da Cultura, Mary disse que quer voltar lá e comprar aqueles três livros. Porque eles daqui a pouco vão sumir, sair de catálogo, como os de Tess Gerritsen. E – aí minha mulher viajou longe -, quando os livros voltarem a ser moda, daqui a alguns anos, porque os livros vão voltar a ser moda, assim como os LPs, eles estarão custando os olhos da cara, objeto de desejo, coisa rara. E nós teremos os originais.

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zzzzsuporte4Quando Mary deu essa viajada, eu, aqui no meu cantinho, estremeci.

Faz anos que os LPs estão voltando – a preços dez vezes mais altos.

Sim, sim – pode haver uma volta desse negócio de livro em versão suporte físico.

Guardo tudo isso para Marina vender a preços maravilhosos daqui a 40 anos?

Mas guardo onde, cara-pálida?

Suporte físico não dá pra guardar na nuvem.

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Toda essa brincadeira sobre suporte físico versus mundo virtual é muito engraçadinha. Deixa de ser quando se vê que o Movie Guide 2015 do Maltin será o último.

O Movie Guide será tema de um outro texto.

16 de fevereiro de 2015

 

3 Comentários para “Ainda e sempre os suportes físicos”

  1. Suportes físicos? Fábulas de Esopo? Livros? Se vocês dois continuarem juntando essas velharias para quando Marina crescer, torçam para que ela tenha interesse por arqueologia. Mas não percam as esperanças: apesar da concorrência dos celulares e tablets, três das seis netinhas daqui de casa gostam muito de ler. Devoram livros, daqueles de papel e sem figuras. Outras duas até lêem, de preferência em alguma parafernália eletrônica, quando não estão hipnotizadas por algum joguinho. Já a mais novinha, Roberta, graças ao WhatsApp, ficou decepcionada ao descobrir a desvantagem de ainda não ter sido alfabetizada. Mesmo assim participa ativamente das conversas eletrônicas, por meio de fotos, mensagens de áudio e dos tais Emoji Emoticons. Mas confessa estar meio chateada por ter sempre que perguntar à irmã, Julia, o que está escrito nas mensagens. E vive perguntando quanto tempo falta para ela aprender a ler. Julia, de sete anos, de tanto ler, escreve como gente grande, com fluência e pouquíssimos erros. Muito melhor do que os milhões de marmanjos que cometem barbaridades na internet. Acompanhou a Copa atentamente e fez muitas perguntas sobre as eleições. Como algumas outras, já ficou meio curiosa ao me ver manejando as páginas enormes de um jornal impresso. Notícias, eu explico. Tem na TV e na internet, ela me esclarece. Outro que também já lê e escreve com alguma fluência é o João, um sobrinho-neto meio precoce, de quatro anos. Adora, ao mesmo tempo, livros e joguinhos eletrônicos. Esse mundo não está de todo perdido, Sérgio Vaz. Só um pouco mais chato, agora que o outro João, o João Lucas, ex-Cabeça de Cone, se mudou para a casa dele.

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