A mercearia de Scorsese

zzzzzzmanuel

Na minha rua da Vila Alice, em Luanda, havia três mer­ce­a­rias. Mas só a do Senhor Manel se podia gabar de ser o espe­lho bor­ge­si­ano das mer­ce­a­rias do Bronx Tale, gen­til filme que Robert De Niro diri­giu, ou das que Phi­lip Roth evoca em roman­ces abu­si­va­mente autobiográficos.

Às horas ile­gais, entrava-se por uma porta late­ral a que se ace­dia por um pátio, onde o senhor Manel tinha uma mesa guer­reira para sue­ca­das que levan­ta­vam ala­ri­dos de Alju­bar­ro­tas. Sacava uma puxada e à luz da gam­bi­arra batiam-se car­tas. Arrotavam-se Nocais e Cucas e nós, can­den­gues, ouvía­mos da boca dos mais velhos o que ainda hoje não repetimos.

Se fos­sem sici­li­a­nos, podiam ser os mafi­o­sos do Era Uma Vez na Amé­rica, do velho Leone. Apos­tas sobre apos­tas, fumo a entrelaçar-se em fumo, os gor­dos ou ossu­dos rabos enfi­avam-se nas cadei­ras, até ao pri­meiro raio de sol das cinco da matina. Um dia, um deles ten­tou pisgar-se, batiam as três na sono­lenta madru­gada. A per­der, o velho Augusto lançou-lhe um labéu capaz de gelar os tró­pi­cos: “Par­ceiro da merda, joga duas par­ti­di­nhas e vai a cor­rer para as saias da mulher.

Eram tra­sei­ras de Rear Win­dow. Jogavam-se car­tas como num “film noir”, bocas cola­das a cigar­ros, a um whisky com Seven Up. Ria-se como Wal­ter Bren­nan na pri­são de Rio Bravo.

Era a vida, mas não era nenhum atraso de vida. Ao ritmo de um quin­tal mafi­oso dos anos 50 de Nova Ior­que, o pátio de mil sue­ca­das de Luanda ante­ci­pou o que ia sacu­di­r a Amé­rica. Os car­ros de 59 ainda eram car­ri­nhas Ford, Che­vro­let e Ply­mouth, espa­das ame­ri­ca­nos. Por pouco tempo. A luz da gam­bi­arra da mer­ce­a­ria do senhor Manel ilu­mi­nou, osci­lante, a che­gada do Simca do meu pai, do Triumph da pro­fes­sora Mimi, do Alfa Romeo do galã gal­dé­rio, do Volkswa­gen preto do ins­pec­tor da Pide, do BMW do senhor enge­nhei­ro. Esti­ves­sem aten­tos em Detroit e sabe­riam, nes­ses anos 60, que a indús­tria auto­mó­vel ame­ri­cana estava condenada.

O que os japo­ne­ses fize­ram depois – a bara­tís­si­mos Hon­das e Toyo­tas – foi só um golpe de mise­ri­cór­dia. O mundo mudou sim, mas à luz ténue da gam­bi­arra da mer­ce­a­ria de Scor­sese, per­dão, do senhor Manel. Na Vila Alice, impro­vá­vel espe­lho de bair­ros ame­ri­ca­nos meio judeus, meio ita­li­a­nos. Isto digo eu, por saber agora, de des­com­pro­me­tida nos­tal­gia, que Alice já não mora aqui.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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