A década que coloriu o cinema

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Ao longo dos anos 60, a década que segundo muita gente mudou tudo, houve um fenômeno fascinante no cinema e outro igualmente fascinante, e um tanto parecido, num tipo de música popular.

Os grandes cineastas abandonaram o preto-e-branco e aderiram às cores. E grandes músicos abandonaram o acompanhamento apenas de violões e aderiram aos mais diversos instrumentos.

É de fato uma maravilha isso: nos anos em que minha geração adolescentava e chegava ao início da maturidade, as coisas ficavam mais coloridas e mais variadas, ricas.

Essa constatação me ocorreu enquanto eu ouvia um dia destes o álbum Album, de Peter, Paul and Mary, de 1966 – e confesso que fiquei encantado com a idéia.

Pode parecer frescura, metideza, eu dizer isso, mas o fato é que acompanhamos tudo – eu e todo mundo da minha geração. Ouvimos os grandes músicos aderindo aos mais variados instrumentos. Vimos os grandes cineastas aderirem à cor, um a um. Como se fosse um movimento combinado.

Como é informação demais, neste texto aqui vou falar só do cinema. Em outro texto, pretendo falar da música. (Nas fotos acima, Catherine Deneuve em Repulsa ao Sexo e em Os Guarda-Chuvas do Amor.)

François Truffaut ficou colorido em Fahrenheit 451, de 1966. Luchino Visconti no segmento dele em Boccaccio ’70, de 1962, e em seguida O Leopardo, de 1963 – mas ele voltaria ao P&B em Vagas Estrelas da Ursa (1965).

Não foi o único. Truffaut também voltou ao P&B em O Garoto Selvagem, de 1970, e depois em Vivement Dimanche!, no Brasil De Repente num Domingo, seu canto do cisne, de 1983.

Fellini se rendeu à cor também em Boccaccio ’70. Como Visconti e Truffaut, voltou ao P&B, em Oito e Meio (1963),  mas a partir de Giulietta dos Espíritos (1965) ficou de vez na cor.

Michelangelo Antonioni fez Il Deserto Rosso em 1964, logo depois da trilogia da incomunicabilidade. A Aventura, A Noite e O Eclipse (1961, 1962, 1963, respectivamente) não poderiam ter existido se tivessem sido feitos em cores. Não teria qualquer sentido mostrar a incomunicabilidade colorida. Assim como não teria sentido um deserto vermelho em filme P&B.

zzzzblowupGênio, Antonioni soube fazer perfeito, brilhante uso das cores em suas incursões pela Inglaterra – Blow Up, de 1966, na foto – e pelos Estados Unidos – Zabriskie Point, de 1970.

Ingmar Bergman demorou bem mais. Não me lembro o filme em que Bergman trocou o P&B pela cor. Teria sido talvez A Flauta Mágica, de 1975. O Ovo da Serpente, de 1977, o filme menos claramente bergmaniano de todos os filmes de Bergman, foi em cores, e não teria sentido ser em P&B.

Mestre Alain Resnais deixou o mundo deslumbrado com o maravilhoso Hiroshima Mon Amour, de 1959, e meio mundo entre deslumbrado e perplexo com O Ano Passado em Marienbad (1961) – ambos com fotografia em incrível preto-e-branco, assinada por Sacha Vierny. Logo depois de Marienbad, em Muriel, de 1963, permaneceu tão misteriosamente enigmático quanto na obra anterior, mas desta vez deixava as platéias perplexas em cores.

Como vários de seus ilustres colegas, como um viciado, voltou – e, no que talvez tenha sido um dos primeiros filmes europeus abertamente anti-stalinistas, filmou a viagem clandestina de um velho opositor do generalíssimo Franco à Espanha natal de novo em preto-e-branco, em A Guerra Acabou (1966).

O jovem Roman Polanski começou em P&B, é claro. A Faca na Água, de 1962, feito ainda na sua Polônia natal, é em glorioso P&B, assim como Repulsa ao Sexo (1965) e Armadilha do Destino (1966), feitos na Inglaterra. As cores só vieram na sua primeira produção americana, já com sua jovem e lindérrima mulher, Sharon Tate, A Dança dos Vampiros, de 1967. No ano seguinte, 1968, ele faria em cores um filme de terror, gênero que sempre havia sido preto e branco, O Bebê de Rosemary.

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Registro necessário, embora óbvio, óbvio, embora necessário: evidentemente, as cores chegaram aos filmes comerciais como algo absolutamente normal ainda nos anos 30. As Aventuras de Robin Hood, de Michael Curtiz, com Errol Flynn e Olivia de Havilland, de 1938, é coloridérrimo, assim como o filme que ficou mais tempo como a maior bilheteria da história, … E o Vento Levou, tem o céu mais vermelho jamais visto no Planeta Terra, seja na vida real, seja no cinema.

Entre os grandes realizadores, Alfred Hitchcock foi um dos precursores no uso da cor. Seu primeiro filme em cores foi o de 1948, Festim Diabólico/Rope.

Que o cinema comercial começou a usar cores nos anos 30, e que um grande realizador aderiu a elas ainda em 1948, são fatos claros. Mas o que este texto quer dizer é que a enorme maioria dos grandes cineastas fez a travessia do P&B para as cores nos anos 60.

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Nunca houve cineastas que exagerassem tanto nas cores fortes quanto Agnès Varda e Jacques Demy. Agnès e Demy eram exagerados em tudo, inclusive no amor de um pelo outro; Demy nos deixou cedo, em 1990, aos 59 anos, e Agnès jamais deixou de prestar tributo ao marido.

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Demy exagerou nas cores em Os Guarda-Chuvas do Amor/Les Parapluies de Cherbourg (1964), Duas Garotas Românticas/Les Demoiselles de Rochefort (1967), na foto acima, e Pele de Asno (1970). Cada tomada de cada um desses filmes tem mais cores do que a bandeira do Brasil – e olha que quem desenhou a bandeira do Brasil tinha uma grande coleção de lápis de cor, como diz uma canção do Chico.

Agnès Varda exagerou nas cores como pouquíssimos realizadores fizeram em As Duas Faces da Felicidade/Le Bonheur (1965).

Pois, como todos os outros grandes, haviam começado no velho e bom P&B. Tomadas em lindérrimo P&B de Lola, de 1961, o primeiro longa-metragem de Demy, invadiriam depois Les Parapluies de Cherbourg. E o drama de Cleo em Cleo de 5 às 7 (1962), de Varda, é o tipo do filme que tinha mesmo que ser fotografado em preto-e-branco.

Posso estar errado, evidentemente, mas acho que, quando o sueco Bo Widerberg filmou Elvira Madigan, em 1967, ele estava evidentemente influenciado pela explosão de cores dos filmes do casal Demy-Varda. Bo Widerberg, como todos os seus contemporâneos, havia começado no P&B.

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Os franceses todos da nouvelle vague e da época da nouvelle vague, finalzinho dos anos 50, começo dos 60, começaram preto-e-branco e depois ficaram coloridos. Foi assim também, além de Truffaut, com Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Louis Malle.

Os pré-nouvelle vague também aderiram às cores nos anos 60 – René Clair, Georges-Henri Clouzot.

Exatamente a mesma coisa aconteceu do outro lado do Canal da Mancha. Da mesma maneira que na França aquele bando de jovens chegou para chacoalhar o que eles diziam ser o excesso de academicismo do cinema francês, um bando de jovens ingleses chegou para se livrar do que chamavam de excesso de formalismo de seus predecessores. Na França, nouvelle vague; na Inglaterra, free cinema.

Tony Richardson, talvez o mais duradouro dos jovens angry men do free cinema, começou em preto-e-branco, com obras como Look Back in Anger, no Brasil Paixão Proibida (1959), Um Gosto de Mel (1961), tremendos sucessos de crítica, para logo em seguir encher a tela de cores em As Aventuras de Tom Jones (1963), tremendo sucesso de público, quatro Oscars.

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Richard Lester, mais travesso que rebelde, marxista mais da linha Groucho que da linha Karl, usou um tipo de humor dos irmãos americanos no primeiro filme dos Beatles, A Hard Day’s Night, lançado em 1964, no auge do beatlemania. Os Beatles em glorioso preto-e-branco! Na segunda aventura, Help!, de 1965, os quatro cavaleiros do após-calipso, como definiu Gilberto Gil, já vieram em cores. Não tinha jeito: era um caminho sem volta.

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Não me lembro qual foi o primeiro filme em cores de Luís Buñuel, o cineasta espanhol que fez filmes na França, no México, de novo na França. Não creio que tenha feito filmes em cores na fase mexicana; as cores vieram na fase francesa, provavelmente em O Diário de uma Camareira (1964), que foi seguido pelo coloridíssimo A Bela da Tarde (1967).

E aí me ocorre que a beleza absurda de Catherine Deneuve pode ser vista, nos filmes dos anos 60, tanto em P&B (Repulsa ao Sexo) quanto em cores (Les Parapluies, Les Demoiselles, La Belle de Jour…).

Mesma coisa com Claudia Cardinale. Está estonteante em P&B em, só para dar exemplos já citados, Oito e Meio e Vagas Estrelas, e estonteante em cores em O Leopardo.

A beleza de Anouk Aimée também pode ser vista em P&B (em Lola, em Oito e Meio) e em cores em Um Homem, Uma Mulher (1966), o filme de Claude Lelouch que ganhou a Palma de Ouro de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro e assegurou para o diretor o ódio eterno dos críticos de cinema de todos os 193 países representados na ONU.

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Até aqui, fica parecendo que a adesão às cores foi um fenômeno europeu. Claro que não: foi universal.

Akira Kurosawa, salvo engano, demorou um pouquinho mais, assim como Ingmar Bergman, e só aderiu às cores em Dodeskaden, de 1970.

O cinema exuberante que se fazia na então Checoslováquia da época da Primavera de Praga fez o mesmo movimento. Dos grandes filmes em preto-e-branco, como O Anjo da Morte (1963) e A Pequena Loja da Rua Principal (1965), da dupla Ján Kadár e Elmar Klos, o cinema da primeira grande tentativa de se fazer um socialismo de face humana chegou às cores demyanas, vardaianas de Um Dia, Um Gato (1963), de  Vojtech Jasný (na foto abaixo).

Až pøijde kocour
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Nelson Pereira dos Santos, Gláuber Rocha, Cacá Diegues, Ruy Guerra, Domingos Oliveira, Roberto Farias – para citar só alguns – também começaram no P&B e foram para as cores. E, de novo: se não estou enganado, todos eles passaram para as cores nos anos 1960.

Da mesma maneira que Arthur Penn, Billy Wilder, Fritz Lang, John Ford, Robert Wise…

Ahn… Em suma, e para resumir, todo mundo, absolutamente todo mundo passou do P&B para as cores – e quase todos fizeram a travessia nos anos 60, enquanto a minha geração começava enxergar o mundo.

Outubro de 2015

8 Comentários para “A década que coloriu o cinema”

  1. Grande Sérgio, grande. Realmente esta passagem nas nossas vidas foram marcantes, hoje vivemos em tecnicolor a realidade p&b.
    Começamos a semana em alto estilo, textos seu e do Manuel para rememorar filmes que marcaram nossa geração. Não poderia ser esquecido o lendário O Mágico de Oz (1939) de Victor Fleming, que possui cenas em p&b e em technicolor e que é chamado na terra do Manuel de O Feiticeiro de Oz.
    Quanto as cores, mais recentemente, não poderia deixar de lembrar que Jean-Pierre Jeunet fantasiou a realidade com seu filme colorido “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001)” que amiga minha disse ter sido baseado nas cores do pintor brasileiro Juarez Machado e ainda a cruel realidade de A LISTA DE SCHINDLLER (1993) Steven Spielberg foi filmado em p&b, por qual motivo?. Recentemente as cores foram bastante bem trabalhadas em Kill Bill (2003), de Quentin Tarantino e nos Sonhos (1990), de Akira Kurosawa onde o cinema se inspira nas cores de Van Gogh para contar 8 sonhos.
    Na nossa época não falávamos das cores de Almodovar assunto que será abordado com certeza quando você for falar da música da Adriana Calcanhoto que faz referência às cores do espanhol em seus filmes, assistidos no Leblon no inverno quase glacial.
    Os filmes e diretores citados me fazem recordar a travessia dos anos 60, no entanto caro Sérgio, espero chegar ao ano de 2965 para assistir Vagas Estrelas da Ursa em esplendorosas cores.

  2. Sérgio por curiosidade, dá para dar o crédito das fotos das loirinhas e o nome delas? Suponho que sejam mesma pessoa em p&b e em cores, suponho também ser capa de disco, suponho também ser Mary em 1966. Correto?

  3. Sérgio, o que você acha de “Young Girls of Rochefort”? Nunca consegui vê-lo inteiro, confesso. Até porque não sou fã de musicais, e acho a história fraquinha. Então só vejo as partes com Gene Kelly, ainda assim, nauseada por causa da dublagem. Pelo pouco que consegui obter de informação, o que era pra ser uma homenagem aos musicais de Hollywood, acabou sendo um fracasso. Nem *dançarinos de verdade eles se preocuparam em colocar no filme. E horror dos horrores, heresia das heresias: a voz de Gene foi dublada quase que em cem por cento do tempo. E ele falava francês fluentemente. Não perdôo Jacques Demy por isso, e nem entendo o motivo, já que Gene Kelly sabia cantar, e tinha a voz muito mais bonita do que a do cara que o dublou (que voz medonha, Meu Deus!).
    Acho que Gene percebeu que o filme seria uma droga (ele disse que não gostou do resultado), e nem se preocupou em criar uma coreografia para sua dança principal, na loja de instrumentos musicais. A dança dele ali é cópia da coreografia de cortejamento que ele fez para dançar com **Leslie Caron, em uma das sequências de “An American in Paris”; a diferença é que ele a simplificou, e os ângulos são muito ruins (as outras sequências de dança têm ângulos péssimos também). Sem falar que “Love Is Here to Stay” é um milhão de vezes mais bonita que a música que toca em YGOR, ainda por cima cantada pelo próprio Kelly, com aquela voz rouca dele.
    Conversando sobre isso com uma amiga que também gosta do Gene e de filmes antigos, ela disse que ele deve ter pensado: “Não vou ser “um americano em Paris”? Deixa eu repetir ‘saporra’ aqui.” Hahaha. É justamente essa a impressão que tenho toda vez que vejo a sequência. Ainda assim, ele arrasa dançando, dando giros e (fazendo questão de dar) saltos; mostrando ótima forma aos 57 anos. As partes mais difíceis ficaram com ele, que até gira carregando a mulher nos braços. Françoise Dorléac parece que sabia dançar só o básico.
    Também não perdôo o responsável pelo figurino, que o fez vestir camisas cor-de-rosa e lilás horríveis (e curtas, limitando os movimentos; ele ficou claramente incomodado com o comprimento, e puxa a camisa várias vezes enquanto dança, tadinho). E quem será que foi o gênio, que num filme tão cheio de cores, colocou os dois para dançarem num cenário branco, vestindo cores pastéis? Como diz uma tia minha: é pacabá!

    *Gene disse: “Todos eles erraram ao supor que seria fácil aprender a dançar somente para o filme, porque dançar parece muito fácil. Mas não é”. [tradução minha]
    **A sequência dele com a Caron em AAIP é linda, de uma beleza plástica que me emociona, apesar de aparentemente simples; embora a obra-prima seja o balé do final, essa dança é a minha preferida no filme. Para mim é a essência de Gene Kelly, a gente bate o olho e vê que foi ele quem coreografou (ensaiou à exaustão, e executou com a perfeição que ele perseguia e lhe era própria), pensando em cada detalhe da música, e também no que a dança representa na cena. Mais ou menos como a coreografia que ele fez para dançar com Debbie Reynolds em SITR. Ambas para mim valem como uma declaração de amor dentro das histórias.

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