Whisky, Bourbon e um Quadro de Honra

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Um dia, Orson Wel­les posou para a Play­boy. Poupando-nos a poucas-vergonhas, em vez de se dei­xar foto­gra­far, deixou-se entre­vis­tar. Cada um dá o que pode. Nessa entre­vista con­tou que, se alguma coisa o ins­pi­rava, era os velhos mes­tres. Com requinte foto­grá­fico, acres­cen­tou: “Quando digo velhos mes­tres, quero dizer John Ford, John Ford, John Ford…

Não deve haver dois mun­dos mais dis­tan­tes. Numa pequena entre­vista que, há anos, me deu para os Cahi­ers du Cinèma, Manoel de Oli­veira dis­tin­guiu dois tipos de cine­as­tas, os cla­ros e sóbrios, os jon­gleurs e pres­ti­di­gi­ta­do­res. Dizia-me Oli­veira que Ford pre­si­dia à con­fra­ria dos pri­mei­ros, Wel­les à dos segundos.

Sem pres­cin­dir do seu mundo de vícios bar­ro­cos, Wel­les não tinha pro­ble­mas em admi­rar o mundo de for­mas clás­si­cas do velho mes­tre. Nin­guém no seu juízo esta­ria à espera que Ford lhe pagasse na mesma moeda. Nem Wel­les, até ter rece­bido, pelo cor­reio, um diploma. Vinha num enve­lope reme­tido por Ford e não havia dúvi­das: o des­ti­na­tá­rio era o autor do prous­ti­ano The Mag­ni­fi­cent Amber­sons. Lá den­tro, um pape­lão mal-amanhado, e lia-se: “Orson Wel­les foi eleito”. Via-se bem que tinha sido escrito à mão e a muito whisky e bour­bon. Assinavam-no John Ford, John Wayne, Ward Bond e uma mão-cheia de mem­bros do clã. Além de tra­zer cola­dos uma dúzia de rótu­los de cer­veja, o mag­ní­fico docu­mento era enci­mado por um impro­vi­sado selo, o Great Seal of Cresta Branca.

O que seja essa Cresta Branca com selo pre­si­den­cial, o que fosse esse diploma, não inte­ressa pevide. O que inte­ressa é que Ford e o seu bando de bebe­do­res vinham dar tes­te­mu­nho de ter eleito Wel­les como um deles. Antes, nas fil­ma­gens de Citi­zen Kane, Ford dera-lhe o pri­meiro sinal. Veio visi­tar o pla­teau e quando viu um dos téc­ni­cos que lá estava, disse-lhe alto e bom som: “Oh, estás aqui, Eddie, velha cobra vene­nosa”, sina­li­zando a Wel­les uma má rês que havia de ten­tar atraiçoá-lo junto dos produtores.

Mais tarde, para o lin­dís­simo e agó­nico The Last Hur­rah, Wel­les foi a pri­meira esco­lha de Ford para o pro­ta­go­nista. Um mal-entendido, que meteu um agente, frus­trou o que podia ter sido um encon­tro his­tó­rico. É pre­ciso que se diga: por mais opos­tos que fos­sem os seus mun­dos, Ford e Wel­les esta­vam vici­a­dos na mesma droga. Ambos acu­sa­vam total depen­dên­cia de Sha­kes­pe­are. Toda a vida se recu­sa­ram a tratá-la.

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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

Na foto, os che­fes da Cresta Branca.

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