Um filme de Malick e Jorge Luis Borges

zzzzmanuel9

Foi a única vez em que Jorge Luis Bor­ges se zan­gou com o seu amigo Bioy Casa­res. De tão irri­tado, Casa­res bem gos­ta­ria de ter dado um lite­rá­rio murro na mesa. Citara a Bor­ges a mais misan­tropa das fra­ses – “a cópula e os espe­lhos são abo­mi­ná­veis por­que mul­ti­pli­cam o número dos homens” –, afir­mando que a dis­sera um filó­sofo de Uqbar, terra mis­te­ri­osa.

Lera-a, jurou Casa­res, no volume XLVI da “Anglo-American Cyclo­pa­e­dia”. Bor­ges tinha a enci­clo­pé­dia em casa e foram veri­fi­car a pas­sa­gem sobre essa nebu­losa região. O artigo não exis­tia. Não obs­tante, Casa­res lera-o. “Tlön, Uqbar, Orbis Ter­tius”, a mais labi­rín­tica fic­ção de Bor­ges, conta-nos tudo em vinte insubs­ti­tuí­veis pági­nas de rigor filo­só­fico e liber­dade imaginativa.

Jul­guei ter apren­dido com esse conto que mesmo a mais vetusta enci­clo­pé­dia se entrega a jogos de ocul­ta­ção. Uma entrada pode apagar-se durante um século, mostrar-se um dia aos olhos de um eleito e esconder-se ao escru­tí­nio obses­sivo de milhões de lei­ores. Já teria esque­cido esse delí­rio de Bor­ges se os fil­mes de Ter­rence Malick não me obri­gas­sem, no seu melhor, a ver o que apa­ren­te­mente lá não está.

Recordo que Adrien Brody fil­mou durante meses com Malick. Era, ou devia ser, o pro­ta­go­nista de The Thin Red Line. Foi à estreia e admirou-se muito quando os jor­na­lis­tas, à entrada, lhe per­gun­ta­ram: “Qual é o seu papel no filme?” Era o pri­meiro grande papel de Adrien e ele levara os pais ao cinema. Des­co­briu que quase não havia uma ima­gem sua nas três horas de filme.

Mas será que a invi­si­bi­li­dade de Brody sig­ni­fica que ele lá não está? E se, como nesse obs­curo exem­plar da enci­clo­pé­dia que só Bioy Casa­res vira, tam­bém um dia, numa bor­ge­si­ana pro­jec­ção de The Thin Red Line, a per­so­na­gem de Brody, essa per­so­na­gem que ficou em semente nas ver­sões que agora se pro­jec­tam, explo­dir em audá­cia e protagonismo?

Con­fio em Casa­res e sei que há, per­dida no cos­mos, uma abo­mi­ná­vel cópia do filme de Malick em que os acto­res se mul­ti­pli­cam em espe­lho ou cópula. Nesse filme, além de Brody, vere­mos tam­bém um dra­má­tico Mic­key Rourke, com­ple­ta­mente cor­tado do filme final. O meu ide­a­lismo filo­só­fico garante-me que a rea­li­dade se ajusta ao que espero dela: vou com­prar todas as cópias que exis­tem de The Thin Red Line. Numa deles está o filme que Malick fez a pen­sar em Bor­ges e Bioy Casares.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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