Os tiros fizeram do carro um passador

Faye Dunaway and Warren Beatty in Bonnie and Clyde, 1967. (Evere

Quando a conheci, já ela mor­rera há ses­senta anos. Conheci a Bon­nie que Clyde amou, em 1994, na man­são de um big shot do cinema, em Beverly Hills. Sábado e sol de Maio, duas ban­das de jazz, vas­tos rel­va­dos, as mesas sob tol­dos pro­tec­to­res. Podia ser a festa do crisma do filho de Michael Cor­le­one, no God­father part II.

Bon­nie mor­reu em 1934, no dia em que mor­reu Clyde, vejam a coin­ci­dên­cia. Para mim, ela terá sem­pre 24 anos, e agora que está­va­mos ali, de olhos nos olhos, era aos 24 anos dela que eu falava.

Se não estou a men­tir, e tal­vez não esteja, estou pelo menos a con­fun­dir. Tal­vez ela fosse a Faye Dunaway, e nos seus 53 anos eu tenha visto os 24 de Bon­nie. Faye Dunaway, a mis­te­ri­osa actriz de Tho­mas Crown Affair e do super­la­tivo Chi­na­town, há-de sem­pre ser a Bon­nie do ner­voso, pós-romântico Bon­nie and Clyde, de Arthur Penn.

Na man­são de Beverly Hills, eu per­gun­tava a Bon­nie pelos assal­tos no Texas, Mis­souri, Lou­si­ana, e Faye respondia-me com a casa que tinha no Algarve. Eu a que­rer san­gue, perigo, um tiro à queima-roupa, e ela “as minhas férias portuguesas”.

Bon­nie era a melhor aluna do liceu, quase tão bonita como Faye Dunaway. Escre­via poe­mas ator­men­ta­dos pela som­bra da morte, pela soli­dão que o casa­mento aos 16 anos não dis­si­pou, pela ino­cên­cia do juve­nil anel de noi­vado que con­ser­vou mesmo depois de andar com Clyde. Mas o que ela que­ria era fazer cinema.

A polí­cia cer­cou Bon­nie e Clyde, em Joplin, Mis­souri. O par esca­pou, matando e ferindo sem pie­dade. Os polí­cias des­co­bri­ram rolos de fil­mes com Bon­nie. O talento era evi­dente. Publicaram-se ima­gens e os jor­nais e a Amé­rica renderam-se a uma ico­no­gra­fia sub­ver­siva, pré-cheguevarista.

Como no fundo dese­ja­vam, a polí­cia emboscou-os e abateu-os. Mais de 130 tiros que dei­xa­ram o carro num pas­sa­dor e os cor­pos deles com perto de 50 bura­cos inca­pa­zes de con­ter a fama que já con­quis­tara a nação americana.

Vinte mil pes­soas assis­ti­ram ao fune­ral de Bon­nie, em Dal­las. A con­ver­sar com os 53 anos de Faye, vi neles o alí­vio que nesse dia terão sen­tido os 24 jovens anos de Bon­nie. Cúm­plice de assal­tos, de rap­tos infa­mes e de assas­sí­nios cobar­des, é pro­vá­vel que só sonhasse ser a actriz que foi nas foto­gra­fias de Joplin. Tal­vez a mão dela nunca tenha dis­pa­rado um tiro. E agora me lem­bro de ver uma ligeira tre­mura na mão magra de Faye Dunaway.

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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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