O santeiro e o galo voador

Não sei bem em que ano foi precisamente, mas sei que foi lá pelo começo dos anos 50, disso tenho certeza. No terreirão que separava a frente da nossa casa da estrada, minha família costumava montar uma fogueira de mais de três braças e erguer um mastro no 23 de junho, véspera de São João.

Noite fria, tão fria como são as noites dessa quadra junina no vale do Mogi Guaçu. Pois foi nessa noite, a mais comprida do ano, que apareceu, como costumava aparecer, uma figura que me acompanhou em quase toda a minha infância. Sem falhar, pelo menos não falhou em todo o tempo que minha memória conseguiu arquivar, impreterivelmente no 24 de junho Antônio comia da nossa mesa. Vinha sempre cansado, marcas doloridas alastrando-se pelos pés escalavrados num caminhar feito sem ajuda de qualquer transporte. Tal como um Lázaro peregrino de sua fé, merecia de minha mãe águas, sais e cânfora, lenitivos que ela lhe oferecia para se recompor de suas feridas.

Tanto nos acostumamos com sua presença que passamos a chamá-lo de Antônio santeiro. Não, ele não era escultor de santo. O santeiro do nome vinha da bandeira que carregava em louvor aos três santos juninos. Era uma promessa de muitos anos.  Começava a passar pelas fazendas antes da dobrada do maio e nossa casa, já na última década de junho, era parada obrigatória no final da sua jornada. Ao passar no 24, encomendava as prendas para o 29, data máxima das comemorações e cuja festança se encerrava com um apogeu quase sempre inesquecível na fazenda Santa Olímpia.

Certo ano minha mãe criara um pintainho em promessa a um santo a cuja graça entregou sua fé e muito mais. Foi quando uma doença andou atacando meu pai e não havia remédio que a botasse para fora do corpo.

O pinto virou frango, o frango viro galo, criado na mão, cheio de manias. Só bebia água de cuia e dormia ao som das histórias de Jerônimo, o herói do sertão, ouvindo os gritos de socorro de Aninha e Moleque Saci, na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que meu pai religiosamente ouvia no começo da noite em um velho rádio alimentado a bateria. Comia milho cateto – de grãos vermelho, não adiantava oferecer-lhe outro – e dormia acocorado num galho da figueira grande, de copa estirada sobre o fundo do quintal.

No galinheiro só entrava para infernizar a vida das moças e senhoras que formavam o seu harém. Já de esporas criadas, o galo de São Pedro, como era chamado, estava no ponto e só esperava a partida do santeiro para despedir-se daquelas plagas e daí alguns dias da própria vida.

Pois na manhã do 24, tição ainda fumegando no resto de fogueira, minha mãe avisou ao visitante que ele devia ocupar-se do galo. Prenda dada, prenda recolhida. Mas quem dera que o homem conseguiu apanha-lo, para gáudio de todos nós, que torcíamos a cada escapada, aos dribles que o galo dava no santeiro entontecido. Caçam daqui, caçam de acolá e nem que procurassem a noite toda não conseguiriam encontrá-lo. De nossa parte nem uma unha de ajuda, ainda que destratando as ordens severas de nossa mãe, que insistia, depois não com tanto vigor, em que déssemos ajuda ao caçador. E o fujão, que sabíamos estar empoleirado num galho da figueira, não se deixou juntar a outros seres de igual destino, mantidos por uma tia carola no cercado do fundo de sua casa até o dia da recolha.

O santeiro foi embora sem o galo e ainda na semana, lá pelo 27, chegou à fazenda um caminhão para buscar as oferendas  Não sei bem o que deu no galo, mas foi então que tive a certeza de que ele não era só uma ave. Era mais que isso, era quase gente, capaz de correr atrás de bola de capotão ou expulsar do quintal qualquer vira-lata que não fosse das nossas relações. Ou então atender a um simples assovio que a gente repicava três vezes quando o queria ter por perto.

Parece que o galo de São Pedro entendeu o que estava acontecendo. No que o pessoal saiu à sua procura, apesar do protesto generalizado da criançada, que o tinha como mascote e debulhava-se num pranto convulsivo pela partida do amigo, no que botaram a cachorrada pra cima dele, o dito bateu asas e voou. Leve como uma pomba rolinha, decidido como um gavião, veloz tal qual uma andorinha, lá se foi até desaparecer na borda do horizonte.

Nunca soube, no rol das histórias galináceas do meu sertão cheio de estórias e causos contados, que tenha havido um episódio igual, falando de um galo voador. Mas, ponham fé na minha palavra, que o meu galo voou, isso voou. Sou testemunha ainda viva desse inusitado fato que virou lenda na boca do povo e virou registro no folclore das festas juninas de Guatapará e na região adjacente do vale do Mogi-Guaçu. E São Pedro também é testemunha e haverá de não me deixar mentir.

A verdade é que nunca mais se soube do paradeiro do galo ofertado ao santo padroeiro da minha família. E nunca mais o Antônio Santeiro passou lá por casa. Nem para os sais e linimentos, nem para a pousada e nem para as prendas. Para desgosto de minha mãe, que fizera promessa pela graça alcançada e não conseguiu vê-la cumprida.

O autor é jornalista em Roraima.

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