O que não está lá

“No engano por desinformação ativa, a ilusão é positiva. A discrepância entre realidade e aparência consiste em induzir um organismo a ver coisas, a formar imagens deturpadas ou a distrair-se momentaneamente. A perceber algo, em suma, que não está lá”.

Não deixa de ser uma ironia que este trecho, que consiste na análise do engano no mundo natural, seja extraído do livro “Autoengano”, de Eduardo Gianetti, que podemos chamar, com uma certa licença poética, de economista-âncora da campanha de Marina Silva, a nova coqueluche da campanha eleitoral.

Gianetti, liberal, é um defensor do tripé macroeconômico (superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação) que marcou os governos FHC e o primeiro governo Lula e que foi relativizado – pra não dizer abandonado – depois que Palocci deixou a condução da política econômica.

Na análise que ele faz do engano no mundo natural, pode caber perfeitamente a Marina Silva que a tragédia do Boqueirão tirou das sombras e arremessou ao centro do palco eleitoral por mais uma dessas fatalidades que põem o cenário político brasileiro de cabeça pra baixo.

De uma hora para outra, estamos vendo algo que não está lá. O que não está lá?

A nova política anti-política que ela defende se encaixa perfeitamente naquele ectoplasma difuso que está na mente das pessoas desde as manifestações de 2013. Uma malaise, uma espécie de mal estar com “tudo que está aí”, um fantasma que estava esperando um corpo sólido em que encarnar.

Os mecanismos emocionais foram acionados pela morte trágica do cabeça da chapa de Marina, e reforçados pelo tradicional afeto que o coração brasileiro dispensa às histórias pessoais de superação, do coitadismo de ter nascido pobre, de ter aprendido a ler aos 12 anos, de ter vencido 12 malárias, e ainda por cima pela paixão telúrica pelas florestas intocadas que, segundo o senso comum, salvarão a vida do planeta num futuro inalcançável pela razão.

Marina, o Ente da Floresta, vestida com seus mantos diáfanos, construiu ao longo da campanha passada – e resgatou rapidamente nesta, empurrada pelo fragor da tragédia – a imagem da política anti-política.

O mesmo ectoplasma que baixou em Jânio e em Collor, que foram derrubados pela inorganicidade de seus governos, agora encarnou em Marina.

Coube a essa entidade – meio fada, meio duende – encarnar, pelo menos neste momento, o clamor pela mudança. Em suas aparições na TV, em debates e entrevistas, deu respostas extremamente políticas a todas as questões, inclusive àquelas sobre o real conteúdo da “nova política”.

Enquanto os canhões dos destruidores de reputações voltam-se contra ela, aquilo que vemos mas não está lá terá que descer ao Reino da Terra e dizer como, com quem e para quem governará. Antes que a ilusão se esvaia.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 29/8/2014. 

 

2 Comentários para “O que não está lá”

  1. SEM ILUSÕES!

    As soluções só podem vir de iniciativas populares. Afinal, não se pode esperar que o Congresso Nacional, verdadeiro balcão de negócios de interesses privados, faça ele próprio uma Reforma Política que liquide com seus privilégios patrimonialistas.

    Na próxima semana, de 1 a 7 de setembro, será realizado em várias partes do país um Plebiscito Popular por uma Constituinte do sistema político, organizado por dezenas de entidades sociais. O objetivo é ampliar o debate popular entorno do tema da Reforma Política.

  2. Sandro,
    esse seu texto está simplesmente primoroso.
    Uma maravilha, da primeira a última linha.
    Forte abraço
    Valdir

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *