O homem que queria ser presidente

O tempo é o senhor da razão. A verdade é filha do tempo. A primeira máxima é de autoria desconhecida; a segunda é atribuída a Marco Tulio Cicero (106 aC, 43 aC). Mas quanto tempo é preciso que escoe para que a razão e a verdade se revelem mais precisas e despidas de equívocos grosseiros sobre acontecimentos relevantes e também sobre pessoas que deles participaram? Conta-se que um jornalista que cobria a conferência de paz na Coreia, realizada em Genebra, em 1953, quis saber a opinião do representante da China, seu então então primeiro-ministro Chu en-Lai,  sobre a Revolução Francesa, iniciada em 1789. Ele respondeu que ainda era cedo para uma avaliação mais precisa. Essa estória entra aqui mais como um  chiste do que para ser levada a sério  na análise de  fatos e de pessoas que fizeram História. De qualquer forma,  registre-se que essa é uma missão a ser melhor cumprida por historiadores (especialmente os não subjugados a ideologias), cujo ofício exige  muita pesquisa e maturação, uma verificação ampla do contexto em que ocorreu o fato ou em que  viveu a pessoa  pesquisada, da sua formação, das influências que recebeu, de suas ideias, sua psicologia,  suas palavras, seus atos e omissões. Já jornalistas geralmente  trabalham sob a pressão do tempo, e na pressa muitas vezes se tropeça.

Às vésperas do centenário de seu nascimento, jornalistas têm um bom pretexto (ou “gancho”, na linguagem das redações) para  também se debruçarem sobre a trajetória política e humana de Carlos Lacerda – um  homem que despertou, em proporções  iguais, o ódio e a admiração de milhões de brasileiros nos anos 40, 50, 60 e 70 do século passado – como aliás já o fez aqui no Estado  o autor destas linhas.

Este demolidor de presidentes,  transformado no líder civil mais destacado do golpe militar de 1964, mesmo não  tendo participado da conspiração que derrubou o governo João Goulart, nasceu no Rio de Janeiro a 30 de abril de 1914 e morreu numa clínica carioca na madrugada de 21 de maio de 1977, 21 dias depois de chegar aos 63 anos).  O atestado de óbito, assinado pelo clínico geral da instituição, informa que uma conjugação de fatores mórbidos provocou sua morte: “Infarto agudo do miocárdio, desidratação aguda por febre, diabetes melito, estado infeccioso agudo e hepatomegalia (fígado aumentado de volume)”.

Pressentimento

zzlacerda1Do longo, contundente depoimento que prestou, entre março e abril do ano  de sua morte,  a uma equipe do Jornal da Tarde da qual tive o privilégio de participar e só tornado possível pelo convencimento obtido do depoente pelo jornalista Ruy Mesquita Filho, o Ruyzito, ficou-me a impressão de que Lacerda estava a ditar um testamento, com sua voz e entonação admiráveis. Antilacerdista convicto na época, um anjo soprou-me que eu  não devia desafiar o depoente com questões provocativas. Foi o segredo do furo jornalístico que estávamos a colher, nos três fins de semana que passamos em sua companhia. Lacerda falou sem ser interrompido, numa narrativa que o gravador ia registrando e duas estenógrafas anotando (como garantia em caso de falha na gravação). Em  nenhum momento recorreu a documentos e anotações; ditou tudo de memória, num português de despertar inveja a quem o ouvia. Só ao final, submeteu-se a um breve pingue-pongue, também transcrito no Depoimento.

“Avidamente, como alguém que esteve privado durante longo tempo dos seus maiores prazeres e de repente se vê em condições de gozá-los novamente, quem sabe se com opressentimento de que seria pela última vez”-  escreveu a propósito o jornalista Ruy Mesquita, ao prefaciar o livro Depoimento, da editora Nova Fronteira, que ganhou várias edições, todas esgotadas.

Pouco antes da série de encontros que teve com a equipe do JT, em seu sítio do Alecrim, no Rocio, região serrana do Rio, que rendeu 34 horas de gravação, Lacerda escreveu um artigo  a que deu o título Minha vida que está se acabando. Nele se confessou um pré-diabético, “como quase todos os homens da minha família”, mas acrescentou que os últimos exames médicos a que se submetera revelaram que estava tudo bem. “Repetiram que estou com um  coração ótimo. Fizeram o exame de fundo de olho e disseram que estou com o fundo de olho de criança”. Mas queixou-se de crises de melancolia, “porque não é fácil”. Para quem começa a fase sexagenária, natural constatar que a descida para os braços da indesejada das gentes se acelera. E, paradoxalmente, quanto mais ela se atrasa mais ela se aproxima. De todo modo, já em 1977, e mais ainda no tempo presente, a morte aos 63 anos  pode ser tida como prematura.

Como ele próprio reconheceu,  não foram fáceis os últimos anos do “personagem civil que possivelmente mais influenciou com eficácia nos rumos da história brasileira entre 1945 e 1968”, nas palavras do historiador José Honório Rodrigues. O banimento da vida política e o consequente ostracismo a que se viu submetido, o remorso pela perda de amigos e pelas atitudes mais tempestuosas que o marcaram e pelo verbo impiedoso com que fustigou adversários, estavam pesando, segundo disseram amigos. A visita da melancolia amiudou-se ao “maior tribuno que passou pela Câmara dos Deputados”, como assegura Paulo Pinheiro Chagas em seu livro Esse Velho Vento da Aventura, e repetiu-me tempos depois o ex-ministro do Trabalho de Jango, Almino Affonso, numa conversa  no restaurante Piantella, em Brasília. “Foi o maior tribuno que eu conheci. O Lacerda falava, e a Câmara parava; os correligionários, embevecidos; os adversários, enraivecidos. Mas uns e outros paravam para ouvir”, disse Almino, de oratória igualmente brilhante, ex-líder do PTB na Câmara, e dos mais duros adversários do tribuno da Tribuna da Imprensa.

Reconhecido por seus dotes oratórios, Lacerda é também louvado por sua passagem pelo governo do  então Estado da Guanabara, entre 1961 e 1965, numa eleição que disputou pela UDN e que venceu   no phofochart  o candidato do PTB, Sérgio Magalhães. Lacerda foi uma pessoa de múltiplos interesses, a quem não parecia faltar pretextos para espancar a melancolia: viajava com frequência, era um leitor inveterado e também escritor,  cultivava rosas no sítio do Alecrim, onde mantinha um canil com raças diversas, apreciava bons vinhos e bons uísques e não seria exagero tê-lo como  um gourmet e um gourmant ativo, cujo talento mostrou no churrasco que nos ofereceu  durante a estadia no Rocio.

Circunstâncias e contextos

Para Ortega y Gasset, só chegamos a ser uma parte mínima do que poderíamos ser.  Na perspectiva do filósofo espanhol, cada um é cada um com suas circunstâncias e, acrescente-se, em contextos (tempo histórico)  variáveis a que está inelutavelmente submetido. Se Carlos Lacerda não chegou a concretizar seu maior projeto – o de conquistar a Presidência da República -, ele viveu intensamente sob esse embalo,  num crescendo que atingiu o auge quando de sua passagem pelo Palácio da Guanabara. Seu nome era tido então como presença certíssima na disputa presidencial marcada  para acontecer em 1965, onde se bateria, entre outros,  com Juscelino Kubitschek, que  saíra a campo mesmo antes de entregar o cargo a Jânio Quadros, em janeiro de 1961, quando o País viu cobertos muros e paredes por toda parte  com a inscrição “JK 65”. Seria uma circunstância complicada para CL enfrentar JK, e o mesmo se diga para JK enfrentar CL. E não é que os dois terminaram seus dias como amigos de infância, trocando cartas e afagos a partir da reconciliação inaugurada nos tempos  da Frente Ampla! Com Jango, ele não chegou a tanto. E fatos instigantes marcariam o final da cada um: os três partiram em datas muito próximas – JK em agosto de 76 (às vésperas dos 74 anos), Jango em dezembro do mesmo ano (aos 57 anos), e Lacerda em 21 de maio de 1977 (aos 63 anos). Uma coincidência macabra, certamente, mas nada a ver com teorias conspiratórias cujos adeptos propagam  que  JK e Lacerda tiveram morte matada. Quanto a Jango, aguarda-se o resultado do exame de seus restos mortais, exumados em novembro do ano passado.

E a propósito de contexto, recorde-se que Lacerda passou quase toda sua vida pública sob a vigência da Guerra Fria, iniciada poucos anos depois do final da II Guerra Mundial e que duraria até a queda do Muro de Berlim, seguida da implosão do império soviético. Nesta guerra ideológica, o outro nome da guerra fria, Lacerda evidentemente ficou, com o vigor de seu verbo e de seus escritos, no lado de cá – o mundo dos EUA e das democracias da  Europa Ocidental – e combateu com igual empenho o lado de lá, onde ficava o mundo dos comunistas, seus arqui-inimigos.

Um convite

Em dezembro de 1963, na fazenda dos Mesquitas em Louveira, no interior de São Paulo, o então governador da Guanabara ouviu de Júlio Mesquita Filho um apelo para integrar a conspiração para tirar João Goulart do poder. Profeticamente,  recusou o convite, argumentando que a derrubada de Jango  propiciaria  a instalação de um regime militar, com duração indefinida. Ruim com o governo civil e constitucional de  Jango, pior sob o tacão militar. Com razão,  intuiu  que tal desenlace  deixaria  mais distante, até mesmo impossível, tornar real seu projeto  de ocupar o Palácio do Planalto.

Não deu outra. Lacerda viu seu ciclo político  interrompido prematuramente com o quinto Ato Institucional, baixado pelo general-presidente Arthur da Costa e Silva, no dia 13 de dezembro de 1968, com o placet de todo o Ministério. Ele se transformara – desde a decretação, em outubro de 1965, do segundo Ato Institucional que, entre outras medidas de força, pôs fim à eleição direta para presidente, prorrogou o  mandato de Castelo Branco  e extinguiu os partidos políticos– na ameaça civil mais concreta à continuidade do ciclo castrense. Essas violências a mais contra a democracia levaram  o Estado ao rompimento definitivo com o regime instalado em abril de 1964, que tivera o apoio entusiástico do jornal  e  de toda a chamada grande imprensa.

zzlacerda2Nos dias de hoje, com o distanciamento crítico que a passagem do tempo costuma possibilitar, não há como negar a transparência com que Lacerda sempre atuou – com primeiras, segundas ou terceiras intenções, segundo o ponto de vista de cada um de seus admiradores e/ou detratores. Com a solidificação da ditadura militar, que se estendeu por 21 anos e que se escancarou com o AI-5, de 1968 (ver a propósito os livros de Elio Gaspari e o recém-lançado pelo historiador Marco Antonio Villa {Ditadura à brasileira}, no qual ele destoa em boa medida  do coro praticamente de vozes iguais nas reportagens, cadernos especiais e documentários de tevê  sobre os 50 anos do golpe de 1964), Carlos Lacerda estendeu  a mão a Juscelino Kubitschek – cuja eleição quis adiar e cujo governo atacou com o ardor costumeiro – e a João Goulart, afilhado e discípulo de Getúlio Vargas, que combatera com igual empenho. Nascia aí, em 1967, a inimaginável Frente Ampla para a restauração da democracia no País. Posta na ilegalidade, em abril do ano seguinte, alguns de seus frutos seriam colhidos só 18 anos depois, com a escolha de Tancredo Neves,  pelo Colégio Eleitoral então existente,  para suceder João Baptista Figueiredo – o último general do ciclo ditatorial.

À acusação de  incoerência e de trocar com facilidade de opinião e de lado, Lacerda deu esta resposta no mencionado pingue-pongue incluído no Depoimento:

“Eu repetiria o Rui Barbosa: ‘Só os tolos não cometem incoerências. Só os burros não mudam de opinião’. Mas prefiro justificar com palavras minhas. O que acontece é o seguinte: os acontecimentos mudam, as coisas mudam de aspecto. E só realmente uma pessoa obstinada ou vaidosa é que não reconhece quando as coisas mudam. O que peço a Deus é que me conserve exatamente essa capacidade de parecer incoerente, quer dizer, de elogiar o sujeito quando o sujeito me parece que está fazendo a coisa certa e, amanhã, espinafrá-lo quando ele me parece que está fazendo a coisa errada. Agora, se você juntar as duas coisas, você é que  parece incoerente. (…) Jânio Quadros, por exemplo: o Jãnio apareceu como um sujeito disposto à vassoura, disposto a fazer um grande governo. Depois mostrou o contrário. Quem é o incoerente? Eu, que o elogiei quando ele parecia bom e o ataquei quando ele ficou ruim? Ou foi ele, que parecia bom e ficou ruim? Incoerente seria eu se continuasse a elogiá-lo.”

Fascismo e progressismo

Lacerda foi comunista num primeiro momento, anticomunista num segundo, e se viu transformado em líder da direita. Mas seria um equívoco classificá-lo de fascista ou de reacionário, por conta de seu antigetulismo e de seu anticomunismo, que certamente o afastaram do centro nos seus tempos de jornalista e nos seus dois mandatos como  deputado federal. Mas não tão afastado de correntes mais ao centro, em várias ocasiões como governador da Guanabara. Não seria uma heresia ver tons  “progressistas” em sua atuação. Bem mais tarde, em seus últimos anos de vida, parece ter reconhecido sabedoria na máxima Virtus in medio. A virtude se ajusta com mais comodidade no centro do que nos extremos.

Foi um golpista? Sem a menor dúvida: em 45 e 54 contra Getúlio; em 55 contra o presidente eleito Juscelino Kubitschek; em 61 contra Jânio Quadros e contra a posse do vice João Goulart e finalmente, em 64, contra seu governo. Conta-se que esse “demolidor de presidentes” participou até mesmo na queda da ditadura salazarista, em Portugal.

Mas o golpismo não é exclusividade da direita no Brasil. A esquerda tem em seu currículo a chamada Intentona Comunista de 1935, bem como as intenções de Leonel Brizola em 1963/64. As guerrilhas que aqui vicejaram durante o regime militar não seriam tentativas de golpismo, tendo Cuba como incentivadora e paradigma? E, bem depois, em plena democracia, não seria golpismo a campanha “Fora FHC”, encetada por Tarso Genro, uma das mais importantes lideranças do PT, para expulsar o presidente do poder? Essas são questões a serem abalizadas  com maior precisão com o passar do tempo.

E, nesse sentido, sem cair no exagero de Chu en-Lai,  o tempo será o senhor da razão para um juízo mais preciso deste homem  de nome inteiro Carlos (prenome de Marx)  Frederico  (prenome de Engels) Werneckde Lacerda. Seu pai (Maurício) era um “socialista romântico”, segundo definição do próprio filho, e admirador dos autores do Manifesto Comunista , o que explica  a homenagem que lhes fez  ao dar os  prenomes da dupla ao filho. Sabe-se, também, que dois de seus tios paternos (Paulo e Fernando) chegaram à secretária-geral do  Partido Comunista Brasileiro – o maior cargo na hierarquia dos PCs.

Carlos Lacerda foi uma pessoa preocupada com sua biografia, como se deduz de seus guardados, doados pela família à Universidade de Brasília. Chamam a atenção, entre outros, o manifesto datado de Primeiro de Abril de 1964 (a data correta do golpe e numa mostra de que altos chefes militares não estavam ainda seguros do sucesso da conspiração),  assinado por três generais do Exército – Costa e Silva, Castelo Branco e Décio Palmeira Escobar – conclamando o oficialato à derrubada do governo João Goulart. Outro documento, com o timbre “confidencial”, datado de 28 de julho de 1964, relata a posição incômoda de alguns oficiais com as primeiras críticas de Lacerda ao primeiro governo da ditadura militar.

O acervo inclui várias cartas recebidas por Lacerda, entre elas as de Mário de Andrade, Érico Verissimo, Rubem Braga, Otto Lara Resende , Carlos Drummond de Andrade –  numa mostra de que desfrutava do convívio e da amizade de  intelectuais e escritores. Autor de vários livros, como o elogiado Na casa de meu avô, e tradutor de obras famosas, entre elas a peça teatral Julio Cesar, de Shakespeare,  e a comovente novela A morte de Ivan Ilitch, de Tólstoi, ele transitava à vontade na área cultural.

Como parte desta tentativa de decifração de Lacerda, sob a advertência que se trata mesmo de uma tentativa, a ser validada ou não pelas máximas que estão na abertura do presente texto, transcreve-se abaixo a carta datilografada que lhe enviou o poeta Drummond,  com data  de 25 de dezembro de 1975:

“A afirmação de que ‘não gosto de você’ seria pelo menos exagerada, se não fosse, como é, totalmente errada. Ninguém é indiferente ao charmeur  irresistível   que você é; e mesmo os que dizem detestá-lo, no fundo gostam de você. Gostam pelo avesso, mas gostam. Quanto a mim, tenho presente que fomos bons camaradas na luta perdida da ABDE, e que lhe dei o meu voto para governador (voto de que não me arrependi, em face dos lances criativos do seu governo). Apenas discordei de posteriores atitudes políticas de você. O que é comum na vida, e não afeta relacionamento pessoal. Certo? O abraço cordial, a admiração e os bons votos do seu Carlos Drummond.”

A ABDE referida por Drummond significa Associação Brasileira de Escritores.

Obsessão e melancolia

Lacerda jamais ocultou seu projeto obsessivo de chegar à Presidência da República. Deixou registrado em seu Depoimento que desprezava os que encaravam o poder como um ônus. “O poder não é cargo de sacrifício. Ao contrário, é uma fonte maravilhosa de alegria.”  “Quando eu descia naquela obra da água (a construção do emissário do Guandu), era uma coisa que realmente me fazia esquecer todas aquelas brigas e desaforos, palavrão pra cá e discussão pra lá.” “Fiz um discurso lá, em que disse quase textualmente isso: ‘Não me importa que não se lembrem, quando abrirem as bicas, quem foi que botou a água. O quem importa é que eu me lembre.’ É uma sensação quase vertiginosa. O perigo disso é o sujeito se converter quase num idólatra de si mesmo, compreendem? É o que acontece com muita gente. Namora tanto o poder que vira Hitler, Fidel Castro, sei lá o que…” “Ser governo não é um sistema de privilégio para você. Ser governo é uma forma quase de escravidão, pelo menos de servidão, isto é, não ter hora, não ter direito nem a ter honra pessoal; é não ter o direito ao amor próprio; é não ter tempo de cuidar dos filhos. “ “Eu tenho nojo da pessoa que diz que está fazendo um sacrifício: ou é um mentiroso, ou é um impostor, ou não sabe o que está fazendo lá.”

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Lacerda passou boa parte dos seus últimos anos atacado pela melancolia – o luto da alma, como poderia ser definida esta mistura de tristeza e solidão com a impossibilidade de consolação. Também se dedicou a reconquistar amigos desavindos, numa missão em que teve como cúmplices o editor Ênio Silveira, o Bom Samaritano, como o apelidaram, e  o jornalista Paulo Francis. O demolidor de presidentes era um causeur admirável e sempre  bem-vindo  nas rodadas de uísque com jornalistas e intelectuais, nas noites cariocas.

Sobre o surgimento de Carlos Lacerda como político, o jornalista Otavio Frias Filho,  no brilhante ensaio que está na edição deste mês da revista piauí, diz que sua popularidade explodiu com a agressiva campanha que moveu contra a construção do Maracanã para a Copa do Mundo de 1950.  Lacerda propunha uma alternativa mais barata, em Jacarepaguá. A campanha  lhe valeu duas surras,  aplicadas por capangas do  prefeito do então Distrito Federal, general  Mendes de Morais. “Essa atuação intrépida, que se estendia ao rádio e logo chegaria à tevê, depressa lhe rendeu a fama de campeão dos costumes públicos – um puritano na terra da malandragem, um intransigente no país do jeitinho”

Registre-se, por fim,  esta síntese sobre o homem  que não conseguiu ser inquilino do Palácio da Alvorada,  feita pelo insuspeito  Otavinho (como o chamam, seus colegas de redação da Folha de S. Paulo),  em seu texto na piauí:

“Jamais alguém levantou contra ele, a sério, alguma denúncia de corrupção. Nunca dependeu do governo, que atacava de maneira quase sistemática, mesmo quando correligionários seus o ocupavam. Foi provavelmente o primeiro político brasileiro a proclamar a educação pública como prioridade máxima, Foi um dos raríssimos a ter, mais  que veleidade literária, um autêntico  apetite intelectual. Seu nome se inscreveria, ainda que não sem controvérsia (como tudo nele), no panteão dos brasileiros que, sendo os mais capacitados de sua época, nunca chegaram a presidente: Rui Barbosa, Osvaldo Aranha, San Tiago Dantas. A restauração do capitalismo na Rússia e na China e o ressurgimento da democracia liberal como fórmula adotada por toda parte, reatualizaram a pregação de Carlos Lacerda, embora não exatamente seus métodos.”

 Este texto foi publicado originalmente no caderno Aliás de O Estado de S. Paulo em 27/4/2014.

Na foto acima, da esquerda para a direita, Ruyzito Mesquita, dona Letícia Lacerda), Antonio Cunha, Melchíades Cunha Júnior, Carlos Lacerda (atrás dele Ruy Portilho) e Ayrton Baffa, durante uma das sessões de entrevistas para o Jornal da Tarde, em 1977. 

 

 

Um comentário para “O homem que queria ser presidente”

  1. Bom texto, excelente e providencial.
    Carlos Lacerda merecia a presidencia, mesmo sem o meu voto. O Brasil perdeu o embate JK x CL.
    O tempo é o senhor da razão. A verdade é filha do tempo. A missão a ser melhor cumprida por historiadores (especialmente os não subjugados a ideologias),já jornalistas geralmente trabalham sob a pressão do tempo, e na pressa muitas vezes se tropeça.
    Jornalista e historiador Melchiades Junior informa o papel golpista de Júlio Mesquita Filho.
    A derrubada de Jango propiciaria a instalação de um regime militar, com duração indefinida, vaticinara então Carlos Lacerda.

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