O amestrador de rola-bosta

O Cotingo herda o Uailan, de curta distância entre seu nascedouro no monte Roraima e as fraldas da cadeia de montanhas do maciço das Guianas, e desce cortando o lavrado em busca do Surumu, já em terras de Pacaraima. Lar da cruviana, vento alísio de Nordeste que varre a região no inverno do hemisfério norte, a vasta savana abriga centenas de comunidades indígenas e algumas famílias mestiçadas. Umas com pai branco e mãe índia, outras originadas da união de índio com branca, consequência do surgimento de fazendas que foram sendo implantadas ao longo dos últimos dois séculos.

Foi ali, nas proximidades do Santo Antônio do Pão, que nasceu Erenildo, o Nildinho, filho de Eneruê e Zenildo. Sempre foi menino esperto, que se destacou da ruma de irmãos pela inventividade, seu jeito moleque de fazer as coisas. Construía seus próprios brinquedos, sabia plantar, capinar e roçar como gente grande e desde pequeno já bodocava passarinho na floresta e flechava peixe nas correntezas, remansos e poços do Maú. Para orgulho do pai, paraense tocador de sítio arrendado no pé da serra que divide Brasil, Venezuela e Guiana, e para desespero da mãe macuxi, roceira de mãos calejadas e tez curtida pelo sol na labuta diária, incansável na busca de uma vida melhor e segura para os oito filhos nascidos todos naquele fim de mundo.

A família sempre se deu bem com os índios da serra. Trocavam mercadorias, se valiam das mesinhas e pajelanças, visitavam-se constantemente e com o tempo meninos e meninas foram incorporando, de cada lado, aos seus costumes, os hábitos da outra raça. Areruia, parixara e damurida passaram a ser música, dança e comida na casa cabocla; nas malocas tornaram-se comuns os jogos de bola, o boi bumbá e as pastorinhas.

Foi nessa convivência que Nildinho aprendeu um oficio no mínimo inusitado na região norte de Roraima. A terra indígena Raposa/Serra do Sol sempre atraiu um grande número de pessoas de fora do Estado, que passaram a visitar a serra por vários motivos, principalmente por causa do processo de demarcação. A maioria, por dever de ofício, andava por lá para conhecer em seu habitat os índios que ficariam famosos no Brasil e no mundo como personagens de um controvertido e arrastado processo levado a julgamento no Supremo Tribunal Federal. Por sinal, a decisão do STF, que mandou tirar todos os brancos dessa área, não valeu para Nildo e Eneruê. Queridos por todas as etnias indígenas, não houve quem convencesse os nativos a cumprir a decisão da Corte Suprema do País. Nem Funai, Polícia Federal, Ministério Público, ninguém. Assim, Nildinho continuou brincando com seus amigos e meio parentes ingaricósmacuxispatamonastaurepangues e uapixanas.

Com a chegada das monções, ali pelos meados de abril, na primeira estiagem ele ia à aldeia onde morava Aiuruê, seu melhor amigo. A diversão da hora era perambular pelas pastagens atrás de besouros rola-bosta (Dichotomiusschiffleri), bicho enorme, negro, disputando para ver quem encontrava o maior deles, que pode chegar a mais de 15 centímetros. Dependendo da sorte, podiam terminar a caçada com um monte deles. Assim, Nildinho passou a ter em casa, numa caixa de papelão, no meio do esterco de boi, um monte de besouros. Não demorou e os insetos passaram a ser seus bichinhos de estimação e o menino pôde então exercitar o ofício de amestrador de rola-bosta. E depois de muita insistência e paciência, fazê-lo puxar carrocinhas que construía com caixas de fósforos. Demorava, mas conseguia.

A vida desse besouro não dura muito. Seu papel na natureza é cavar um buraco, enrolar esterco em bolas que leva para dentro do ninho onde a fêmea vai depositar os ovos. Aliás, seu último ato em vida é fecundar a fêmea, que o mata em seguida e leva seu corpo para alimentar a ninhada. Assim, com o passar do tempo, o inseto começa a se incomodar com a prisão. O instinto é sempre o de fugir, ir atrás de esterco e cumprir o seu papel de macho e de futuro pai.

Certo dia, voltando de uma pescaria, Nildinho e Aiuruê encontraram nas praias do Maú alguns cascos de filhotes de tartaruga da Amazônia (Podocnemis expansa), certamente devorados por trinca-ferros e outros predadores ao tentarem vencer dramaticamente a distância entre o ninho e a calha do rio. Foi quando Nildinho deixou vazar sua criatividade ao bater-lhe a idéia de fazer o besouro arrastar o casco como se fosse uma tartaruga fantasma, um zumbi.

Então, sua maior diversão passou a ser a treinar alguns rola-bostas para fazê-los andar com o casco nas costas. Uma tarde, enquanto brincava, chegaram visitantes da cidade e um deles ficou impressionado com aquilo. Perguntou a Nildinho como o casco se movia sem ter uma tartaruguinha dentro? “É um casco encantado, mágica de índio”, inventou. “Me vende?”. “Vendo”. “Quanto custa?”. Nildinho olhou para o sujeito e viu que o lucro seria fácil: “Dez reais”. Recebeu o dinheiro e entregou o casco, tomando o cuidado de não revelar o segredo. “Para andar tem que fazer o quê?”, perguntou-lhe o ingênuo comprador. “Diga só painikon três vezes (em macuxi quer dizer vamos). Só isso”.

Algumas horas depois o comprador voltou com o pequeno casco na mão e reclamou com Nildinho: “Não tem encanto nenhum. Painikon, painikon, painikon e o bicho não anda. Tome de volta e me devolva dinheiro”. O menino deu um sorriso, foi no quintal, pegou um rola-bosta, escondeu-o sob o casco de tartaruguinha o fez andar. O sujeito não se conteve e tanto insistiu que ele acabou lhe contando o segredo: “Ah, então é isso! Pois me venda também o besouro”. Nildinho foi curto e grosso: “Vendo, mas são cem reais”. O turista quis saber por que o inseto custava tanto: “Doutor, não é fácil treinar um rola-bosta. Dá um trabalho danado…”

O autor é jornalista em Roraima.

 

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