Não era rico, era monopolista

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O cinema não me deu tudo. O tempo que julgo ver nos fil­mes tal­vez seja a ideia de tempo que lhes dou eu por já a levar da vida. Dos 10 aos 15 anos, no liceu, com excep­ção das aulas, todo o tempo foi meu. De um total anual de 8.760 horas, 7.880 gozei-as como e quando quis, senhor e dono de 90% do meu tempo. Não era rico, era mono­po­lista. Tempo sump­tuá­rio: as horas a escor­rer deva­gar, como vi depois no Hot Spot de Den­nis Hop­per, o ardente clima de deu­ses, liber­dade de ruas, jar­dins, bar­ro­cas sel­va­gens, praias e duas ilhas. Nin­guém nos disse a pala­vra “perigo”. Inventámo-la em bando.

Cer­tas noi­tes, arma­di­lhá­va­mos os pas­seios da rua com linha de coser botões. À altura do pes­coço de um adulto médio, atávamo-la aos pos­tes da luz e às árvo­res dos quin­tais. Depois, sen­ta­dos em muros, que sem saber­mos eram fel­li­ni­a­nos, assis­tía­mos oci­o­sa­mente aos estragos.

As víti­mas sal­ta­vam de susto, sem per­ce­ber que tinham caído numa teia invi­sí­vel que lhes tinha ten­tado cor­tar o pes­coço. Viam-nos a rir e aí era pre­ciso ficar firme. Quem fugisse “era uma menina”, o mais temí­vel dos insultos.

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Era uma menina” quem não ras­te­jasse, à Ame­ri­can Graf­fiti des­co­bri­ría­mos depois, para meter calhaus redon­di­nhos, tra­zi­dos da praia, nas jan­tes do carro dos tipos a beber finos na cer­ve­ja­ria. Arran­ca­vam e para­vam logo, apa­vo­ra­dos com o estar­da­lhaço, a pen­sar que tinham gri­pado o motor.

E, Once Upon a Time in Ame­rica, éra­mos meni­nas se não subís­se­mos a cara­man­chões a esprei­tar as vizi­nhas, pelo menos as mais rele­van­tes par­tes delas, para tirar os men­tais apon­ta­men­tos que depois dila­ta­riam a nossa soli­tá­ria e lunar imaginação.

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Nenhum de nós foi uma menina na noite de cacimbo em que des­co­bri­mos estar des­tra­vado o carro de um recém-vizinho, gerente de caba­ret, que inve­já­va­mos por ter as bai­la­ri­nas lá em casa. O carro, levado para o meio do cru­za­mento, a parar o trân­sito, cau­sou a mais noc­turna como­ção da his­tó­ria do bairro: per­se­gui­ção e cerco, ardis de Ulis­ses, a imi­nên­cia de um vasto atesto de pan­cada. Fomos sal­vos à wes­tern, sal­va­ção de último minuto, pelos mais-velhos, John Way­nes lá do bairro.

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É ainda esse luxo asiá­tico das horas colo­ni­ais de África que levo para os fil­mes que vejo. Mesmo que na vida, hoje, só pareça haver um fugi­dio tempo para a memó­ria do tempo em que havia tanto, tão vaga­roso tempo.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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