Conta outra, vó – Maria Borralheira

Nota: Relação deste conto de minha avó com a tradicional Cinderela, a Gata Borralheira, só a madrasta com duas filhas e o casamento com o príncipe. Provavelmente, no interior de Minas, entre um contador e outro, na maioria analfabetos, a história foi perdendo alguns detalhes e ganhando outros, mais ligados à cultura e aos costumes do povo; isto de lavar o bucho do boi, por exemplo.

As três versões mais famosas de Cinderela, para nós, são a de Charles Perrault (1628/1703), a recolhida pelos irmãos Grimm (1785/1863 e 1786/1859) e a de Walt Disney (1901/1966). Disney se baseou na versão de Perrault, talvez porque a dos irmãos Grimm seja muito selvagem: para que as irmãs calçassem o sapatinho, uma corta o dedão fora e a outra o calcanhar. E ambas são punidas com a cegueira.

A versão mais antiga está em Estrabão, geógrafo grego (c.58aC/c.25dC). Segundo ele, contava-se no Egito que a pirâmide de Mikerinos teria sido erigida para uma concumbina do faraó Psamético: um dia a jovem Rodopisa tomava banho e uma águia roubou-lhe uma sandália. Voou para longe e soltou a sandália, que caiu junto do faraó. Encantado com a delicadeza e o tamanho do calçado e pelo maravilhoso do fato, ordenou que mensageiros procurassem pela dona da sandália. Encontrada em Naucratis, foi levada até ele e eles se casaram (Geografia, XVII, I, 4).

No entanto, Heródoto (480-425aC), em sua História (livro II, 134, 135) narra outras peripécias sobre essa Rhodopisa, apesar de confirmar a tradição oral de que a pirâmide teria sido para ela.

***

Era uma vez uma linda menina chamada Maria Borralheira. Tinha uma madrasta muito malvada. Enquanto a madrasta folgava com suas duas filhas, Maria Borralheira precisava fazer todo o serviço da casa.

Um dia mataram um boi e Maria Borralheira foi lavar o bucho no rio. Era um serviço que ninguém queria porque o bucho sempre estava cheio de bosta. Quando ela foi virar o bucho do boi, o bucho escapuliu e foi embora nadando. Com medo da madrasta, Maria Borralheira foi seguindo o bucho pela margem do rio e tanto andou e tanto andou que foi parar num lugar desconhecido. O bucho agarrou nuns galhos e ficou parado. Maria Borralheira pegou um pedaço de pau e trouxe o bucho pra terra.

Perto dali tinha uma casinha velha. Como ela estava cansada, resolveu entrar. Estava uma bagunça medonha. Comeu um pedaço de pão e descansou. Depois, como querendo agradecer pelo pão, varreu o chão e lavou a louça e lavou a roupa e estendeu no varal e limpou os móveis e limpou o fogão e quando ia saindo escutou um barulho. Se escondeu atrás da porta.

Entraram três velhinhas que eram três fadas. Olharam e se admiraram.

Falaram as três juntas:

– Mana, mana, quem tanto bem nos fez?

Falou a primeira:

– Quem tanto bem nos fez merece uma estrela de ouro na testa!

E nasceu uma estrela de ouro na testa de Maria Borralheira.

Falou a segunda:

– Quem tanto bem nos fez, merece que saiam flores de sua boca quando falar!

Maria Borralheira falou baixinho oh!, e saiu uma rosa de sua boca. De medo ela se escondeu mais.

Falou a terceira:

– Quem tanto bem nos fez, há de se casar com um príncipe encantado!

As três velhinhas saíram. Maria Borralheira olhou pela porta e não viu ninguém. Então pegou o bucho e saiu andando. As pessoas que viram a moça com uma estrela na testa se espantaram e se admiraram. Começaram a segui-la e logo se formou multidão que a acompanhava.

Perguntaram o nome dela:

– Maria Borralheira.

E escapuliram de sua boca rosas, margaridas, violetas e lírios.

Foram contar ao rei e o príncipe quis conhecê-la. Gostou tanto dela que levou-a para o palácio e se casaram na mesma hora.

A madrasta queria cozinhar o bucho e foi no quintal. Não encontrou ninguém. Saiu perguntando e um velhinho disse que Maria Borralheira tinha se casado com o príncipe. A mulher comprou um vestido e tomou banho e untou os cabelos e vestiu o vestido e foi ao palácio. Maria Borralheira deu presentes a ela e contou o que tinha acontecido.

A mulher comprou roupas novas para sua filha mais velha e comprou também um bucho limpo e soltou-o no rio e mandou que a moça seguisse atrás do bucho.

Ela foi andando e andando e xingou a mãe que a fazia andar tanto. Quando o bucho parou, agarrado nuns galhos dentro dágua, ela encontrou a casinha. Entrou. Estava tudo limpinho e cheiroso. Ela, só de raiva, por ter andado o dia inteiro, pegou a vassoura na cozinha e começou a quebrar tudo e jogou areia no chão e pisou nos lençóis e derrubou o saco de farinha. Quando ia sair, ouviu barulho e se escondeu atrás da porta.

As três velhinhas entraram e elas eram as três fadas. Olharam e se admiraram.

Falaram as três juntas:

– Mana, mana, quem tanto mal nos fez?

Falou a primeira:

– Quem tanto mal nos fez merece ficar com o corpo coberto de pereba!

E o corpo da irmã ficou coberto de pereba.

Falou a segunda:

– Quem tanto mal nos fez, há de soltar sapos quando falar!

A irmã mais velha falou baixinho oh!, e pulou um sapo de sua boca. De medo ela se escondeu mais.

Falou a terceira:

– Quem tanto mal nos fez, há de se casar com um sapateiro malvado!

Saíram. A irmã mais velha olhou pela porta e não viu ninguém. Saiu andando. As pessoas que viram aquela moça cheia de pereba se afastavam e riam. Começaram a importuná-la e ela gritou furiosa:

– Saiam daqui! Saiam daqui!

E escapuliram de sua boca dois sapos.

Foram contar ao rei e o rei baniu-a do reino mas um sapateiro malvado, que não sabia cozinhar, casou com ela e ela ficou trabalhando pra ele.

A madrasta teve uma noite muito feliz. Pensou que a filha estava casada com outro príncipe e no dia seguinte comprou pra filha mais nova um vestido rico e a mandou seguir um bucho de carneiro, que já comprou limpo.

A moça começou a seguir de má vontade o bucho e voltou pra casa. A mãe ficou furiosa e gritou:

– Sem-vergonha! Então comprei este vestido rico pra você ficar pra lá e pra cá feito uma duquesa! Já atrás do bucho!

A moça foi andando e não achou o bucho e andou e andou e andou e encontrou a casinha das três velhinhas que eram as três fadas.

Tal e qual. Sujou o que estava limpo, quebrou o que estava inteiro, rasgou o que estava novo. Chegaram as fadas fazendo barulho e ela se escondeu.

As fadas olharam e se espantaram porque nada estava inteiro.

Falaram as três juntas:

– Mana, mana, quem tanto mal nos fez?

Falou a primeira:

– Quem tanto mal nos fez merece ficar com o corpo coberto de pereba e com cheiro de alho!

E a irmã mais nova ficou com o corpo cheio de pereba e cheiro de alho.

Falou a segunda:

– Quem tanto mal nos fez, merece que saiam de sua boca sapos e cobras quando falar!

A moça falou baixinho oh!, e pularam um sapo e uma cobra de sua boca. De medo, escondeu-se mais.

Falou a terceira:

– Quem tanto mal nos fez, há de se casar com o tripeiro malvado!

Disseram assim e saíram. A irmã mais nova olhou pela porta e não viu ninguém. Saiu andando. As pessoas que viram aquela moça cheia de pereba e cheirando a alho se afastavam e riam. Começaram a importuná-la e ela começou a xingar nomes feios.

E escapuliram de sua boca um sapo e duas jararacas.

Foram contar ao rei e o rei condenou ela à morte mas um tripeiro malvado, que não gostava de trabalhar, casou com ela e ela ficou limpando bosta de bucho até morrer.

Quando contaram pra madrasta o que tinha acontecido com suas filhas, ela levou um susto tão grande que caiu pra trás.

Entrou por uma porta,

Saiu pela outra.

Quem quiser

Que conte outra.

Do livro Conta Outra, Vó, por Jorge Teles. 

 

 

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