Conta outra, vó – As alminhas penadas

Nota: De todas as historinhas contadas por minha avó, esta é a única que narra um acontecimento vivido por ela. Registrei-a por sentir que ela tem uma carga folclórica, mas não acredito que o fato tenha acontecido.

Deve ser mentira, dessas mentiras míticas, inventadas ingenuamente para justificar uma crença qualquer. Quem sabe?, minha vó ouviu o conto de alguém e no recontar se colocou como personagem. A mesma idéia de que se pode e se deve batizar bebês morituros, ou mesmo depois que morrem, quando não há padres à disposição, era reforçada pela vizinha de Vila Isabel, Dona Cacilda, a avó, paraibana. Nunca li texto em que tal fato fosse narrado.

***

Quando morre alguém que não foi batizado, a alma não vai pro céu nem pro inferno nem pro purgatório. Fica vagando pelo mundo, assustando as pessoas, vira alma penada. Se quem morre é uma criancinha pagã, a alminha penada fica penando até que alguém batize ela. Gente grande não pode ser batizada depois de morta. Não adianta. Vai penar pela vida afora até o dia do juízo, quando então o deus separará os bons dos maus. Mas os pequeninos inocentes podem ser batizados depois de mortos.

Uma vez eu e duas filhas mudamos duma roça pra outra. O Anísio já tinha morrido, eu estava viúva. O Oliveira estava no Rio, tirando o tiro de guerra. Os outros filhos já estavam casados. Então, eu e a Nanísia e a Natália mudamos duma roça pra outra. Saímos com o embornal e pedimos pousada muitas noites. Antigamente a gente ganhava pousada. A dona da casa fazia um mingáu de couve com linguiça e toicinho, fritava torresmo, mexia um angu gostoso, a gente comia e conversava até tarde em volta do fogão. No dia seguinte, escuro ainda, a gente levantava, levantava antes do galo. A dona da casa dava frango frito, carne, a gente pegava o embornal e caçava rumo. Na noite seguinte, a mesma coisa. A gente ficava quinze, vinde dias viajando. Aí chegamos em Manhuaçu. Fomos direto pra casa da Milota.

Perto dali, na entrada da cidade, tinha uma casinha abandonada. Perguntamos e disseram que era uma casa mal assombranda. Crianças tinham vivido lá e morreram pagãs. Ninguém conseguia morar lá.

Aí nós três resolvemos morar lá. No meio-dia entramos, estava tão sujo! Limpamos tudo, arranjamos umas palhas, forramos com uns panos. Nessa noite jantamos na Milota e fomos dormir na casa abandonada.

Eu já estava dormindo e a Natália me acordou:

– Mãe!, mãe!, ela cochichou. Está escutando?

Eu não tinha escutado nada. Virei pro lado. Mas antes que eu dormisse de novo, ouvi um barulho esquisito.

– Deve ser alguma criação.

Levantei-me e olhei pela fresta, se tinha algum boi ou mula ou cabrito. Não tinha nada. Deitei e o barulho começou outra vez. Parecia uma pancada no chão, um pulo. Levantamos as três e procuramos. Não achamos nada, nem gato nem galinha. Rato não podia ser.

Não tínhamos fogo pra acender. Sentamos nas palhas e ficamos esperando. Aí começou um gemido de criança. Uma espécie de chorinho de bebê. Depois outro e outro e de repente tudo silenciava. Mais um pouquinho e o gemidos gemiam de novo e era uma aflição ouvir tanto chorinho.

Começamos a rezar. Primeiro baixinho, só em pensamento. Depois rezando alto e o barulho acabou. Passado um tempo, deitamos de novo.

E nunca tive medo de alma penada. Gostava de conversar com elas, perguntar o que queriam. Se elas gemiam, eu dizia que ia rezar e elas iam embora. Às vezes elas vinham só dar um aviso. Então eu não viajava, eu vigiava as crianças, eu cuidava mais da criação.

Mas aquelas crianças, eu não sabia o que elas queriam. Se fosse dar um aviso, elas não iam saber. Se fosse pedir oração, elas não iam saber. Só iam saber gemer e chorar.

Quando eu estava quase dormindo de novo, o gemidinho recomeçou. Quis levantar mas vi que não adiantava. Aí perguntei o quê que vocês querem. Eles pararam de chorar. Unzinho começou a gemer de novo e eu tornei a perguntar o quê que vocês querem. De novo eles calaram a boquinha de alma. A Nanízia falou:

– Mãe, eles querem batismo.

Então eu perguntei:

– Vocês querem batismo?

Ai foi uma choradeira e uma barulheira e eles começaram a gemer como se tivessem entendido minha pergunta.

Aí eu levantei e enchi o caneco com a água da moringa e coloquei um pouco de sal do meu embornal. Pedi à Natália e à Nanízia que rezassem comigo. Rezamos um credo, um padre-nosso, uma salve-rainha e uma ave-maria. Fiz uma cruz com o braço e joguei a água no ar.

– Eu vos batizo em nome do pai e do filho e do espírito santo amém.

As vozinhas diminuíram e acho que os gemidos estavam até alegrinhos. Rezamos de novo um credo, um padre-nosso, uma salve-rainha e uma ave-maria. Fiz outra cruz no ar e joguei mais água salgada:

– Eu vos batizo em nome do pai e do filho e do espírito santo amém.

Aí as vozinhas diminuiram mais ainda e já era um chorinho de bebê satisfeito.

Rezamos o último credo e o último padre-nosso e a última salve-rainha e a última ave-maria e eu joguei o resto da água em cima dos gemidos, fazendo uma cruz.

– Eu vos batizo em nome do pai e do filho e do espírito santo amém.

Ficamos sentadas esperando e nada. Nem um gemidinho, nem um ruído de ratinho. Deitamos e esperamos e quando abri os olhos um galo já estava cantando lá longe.

Dormimos lá nas outras noites, sem barulho, sem choro.

É que as alminhas tinham ido pro céu.

Do livro Conta Outra, Vó, por Jorge Teles. 

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