Cerrado. Gracias y adiós

zzzzvenezuela1 Aduana de Santa Elena Foto JPavaniSANTA ELENA DE UAIRÉN, VENEZUELA – As ruas desta pequena cidade venezuelana, a primeira depois da fronteira, já não são mais o calçadão de milhares de roraimenses, a maioria dos frequentadores dos seus supermercados e de todo tipo de loja. A grande variedade de produtos importados, que faziam a festa dos que se aproveitavam dos preços e das facilidades do comércio formiga, sumiu. Principalmente os itens básicos de alimentação, higiene e limpeza, agora proibidos para os estrangeiros.

Insistir na compra é arriscar a própria liberdade, pois perder os objetos comprados na aduana venezuelana (na foto) é hoje o menor dos males. Os militares da Guarda Nacional tomam tudo e sem qualquer cerimônia levam o butim embora para suas casas no fim de tarde. E o “contrabandista” pode ser preso e acabar mofando numa cela suja das cadeias de Puerto Ordaz.

Já não compensa sequer abastecer o carro com gasolina venezuelana a 25 centavos de real por litro. O único posto que vende combustível para brasileiros está quase sempre com os depósitos vazios e as filas que se formam na disputa pela quota de 20 litros são quilométricas. Nem sempre o motorista consegue abastecer quando chega sua vez, pois pode já não haver mais uma gota disponível. Os caminhões-tanque da PDVSA (Petróleo de Venezuela S. A.), a Petrobrás venezuelana, que em épocas normais vinham duas vezes ao dia, agora só aparecem uma vez por semana ou a cada 15 dias. A Venezuela, acreditem, com a produção estagnada e o parque de refino sucateado, hoje está importando combustível. (Na foto, fila de carros brasileiros tentando abastecer com a gasolina venezuelana.)

zzzzVenezuela 3 - Fila de brasileiros tentando abastecer na fronteiraFoto JPavani

A violência aumentou assustadoramente em Santa Elena, que fica a apenas 218 km de Boa Vista. Muitos dos moradores da cidade são de origem indígena ou então brasileiros que até bem pouco tempo ganhavam a vida no comércio local. Hoje, os cerca de dez mil habitantes vivem num clima de apreensão com o aumento de assaltos a mão armada, arrombamentos de veículos e estupros.

Segundo o coronel Aparício Toledo Guerra, comandante do batalhão 86 da Guarda Nacional, “com a difícil situação econômica e social que vive o país, triplicaram os assaltos e roubos”. Ele ressalta que a maioria dos crimes é praticada por gente de fora, os antissociais, como os bandidos são chamados por aqui. “São marginais vindos de El Callao, El Dorado, Tumeremo e outras cidades do Estado Bolívar, que fogem para a área de fronteira, com menor densidade demográfica, em busca de oportunidades para sobreviver. O assalto é uma delas e suas vítimas são principalmente os brasileiros que ainda vêm aqui fazer compras”, emenda Guerra.

Quem conhece a Venezuela sabe que o país enfrenta uma grave crise política, social e econômica. Jornalistas com quem conversei em Ciudad Guayana e Ciudad Bolívar, capital do Estado Bolívar, as duas maiores áreas urbanas do sul da Gran Sabana, vêem essa situação impregnada dos elementos que acabam levando à guerra civil. Helena Roraima, advogada brasileira, nascida numa aldeia indígena ao norte de Boa Vista, e que há três décadas vive e trabalha em Santa Elena, já pensa em atravessar a fronteira de volta e instalar-se em Pacaraima. “Desde que a Assembléia Nacional aprovou a Lei Habilitante em outubro do ano passado, dando ao presidente Nicolás Maduro o poder de legislar sobre vários assuntos, o Estado de Direito foi estraçalhado, não há mais segurança jurídica no país.”

Assim que tomou para si a responsabilidade de editar leis, principalmente as de cunho econômico, Maduro determinou a criação de milícias populares, que têm a missão de fiscalizar o comércio, a indústria e qualquer cidadão – e denunciar qualquer um às autoridades policiais. O presidente também editou a Lei do Lucro, pela qual nenhum empresário pode ganhar mais que 30% sobre o preço de custo de qualquer produto. Agora, sob a alegação de garantir o abastecimento, o governo Maduro listou uma quantidade enorme de produtos e decretou que sua venda está proibida para estrangeiros. Quem for pego atravessando a fronteira com esses itens – mesmo que na quantidade mínima e dentro da cota de US$ 300, permitida pelas normas do comércio formiga, segundo acordo entre Brasil e Venezuela – será preso e acusado de contrabando.

Esse engessamento da economia fez com que muitas empresas fechassem as portas, agravando de vez o desabastecimento. Como lembra Vitor Monteiro, o Vitinho, doleiro que há mais de três décadas vive entre Pacaraima e Santa Elena, o papel higiênico virou preciosidade.

Também o papel jornal está sumindo. Os independentes não conseguem dólares para importar o insumo e vários já pararam de circular. El Universal, o maior e mais influente do país, não aguentou a pressão e para não fechar as portas acabou sendo vendido para empresários ligados ao governo. Outros menos influentes, como o Diário del Caroni, de Ciudad Guayana, e o El Nacional, de Caracas, com quase um século de existência, sobrevivem hoje apenas na plataforma digital. Tal y Cual, o mais antigo da Venezuela, teve que fazer um acordo com o governo para poder continuar circulando e perdeu a liberdade que sempre o caracterizou em mais de cem anos de vida.

O controle sobre o câmbio restringiu o acesso aos dólares. Os grandes supermercados que inundavam Santa Elena com produtos importados, transformando a cidade na meca de consumo dos roraimenses – o real vale hoje quase 50 bolívares no paralelo -, mudaram-se para Lethem, a 120 km de Boa Vista, na fronteira da Guiana com o Brasil. Levaram juntos a freguesia, pois além dos preços mais baratos, o real vale 120 dólares guianenses no mercado livre e a viagem demora a metade do tempo que se leva até a Venezuela. Nos enormes armazéns vazios de Santa Elena restaram apenas a despedida, escrita em espanhol nos pequenos cartazes de cartolina: “Cerrado por falta de mercancias. Gracias y adiós”.

Em Roraima, a preocupação com uma turbulência social descontrolada na Venezuela é com o que poderá ocorrer na fronteira. As autoridades temem pelo pior, no caso de um confronto entre o governo e os descontentes. Uma amostra do que pode vir ocorreu nos primeiros meses deste ano, quando dezenas de pessoas morreram, outras centenas ficaram feridas e políticos da oposição foram cassados e mandados para a prisão. O temor se justifica: milhares de venezuelanos certamente atravessarão para o lado brasileiro em busca de segurança. Muitos irão embora para Manaus e outros grandes centros, mas um grande número provavelmente ficará em Pacaraima ou acabará se arranjando em Boa Vista. A pergunta é: o Estado e seus municípios têm condições de abrigar todo esse contingente de refugiados? A resposta é simples e direta: não, não tem. Se as previsões se confirmarem, a revolução bolivariana de Hugo Chávez, gestada no colo de Fidel e agora comandada por Nicolás Maduro, irá igualmente transformar Roraima num inferno.

Novembro de 2014.

O autor é jornalista em Roraima.A

As fotos são de JPavani.

Leia também: Viagem ao inferno bolivariano.

 

 

2 Comentários para “Cerrado. Gracias y adiós”

  1. Como faz falta o estuda da História da América Latina. Acredito que a reformulação do currículo do Ensino Médio, precisa contemplar com mais robustez, a Histórica da América , pois só assim, conhecendo seu passado, as futuras gerações lutarão pela emancipação total das Américas Central e do Sul. Somente a educação humanística para dar um norte aos destinos dessa parte do Continente.

  2. [importante ler até o fim]

    Nas revoluções – o Brasil nunca sofreu nenhuma -, a produção e os investimentos se desorganizam (França, 1793; Rússia, 1921; Cuba, 1961; Venezuela atual). A revolução é o pior momento da história de um País. Os exemplos pululam. Só não estuda o jornalista que não quer.

    Elogia-se a globalização, o mercado, os investimentos gringos. Pois eu digo: não foi com globalização que a serra gaúcha emancipou-se. Gramado, Monte Belo do Sul e Bento Gonçalves não se tornaram lugares dignos a partir de empresários oportunistas venezuelanos.

    Um homem serrano, o Professor Leandro Karnal, em participação no Jornal da Cultura, deixou claro que os empresários não querem investir e produzir num país que redistribui renda. Ou seja: um país onde se recebia um dólar por dia e, do nada, o salário mínimo se torna algo que preste.

    [o Prof. Karnal não é simpático ao bolivarianismo]

    Os empresários só tem gosto em produzir nos países do tipo africano – dentro e fora da África -, onde a população sobrevive comendo grama.

    A Venezuela fez mudanças sociais e é punida pelos empresários por isso. Não conseguiria investimentos, ainda que fosse um país organizado, com regras claras, previsibilidade etc. O que se exige, para a retomada das inversões estrangeiras, é o respeito a contratos coloniais! Pra que levar os empresários latinos a sério?

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