Pernas de franga, tacões gigantes

zzzzzzzjodie

Já vamos em trinta minu­tos de filme e ainda não a vimos. É então que ela se atira para o banco de trás do táxi de Tra­vis Bic­kle, per­so­na­gem que, por ser mais De Niro do que De Niro, lhe rou­bou a alma.

Adi­vi­nha­ram, estou a falar de Iris, a menina de hot pants, per­nas de franga e tacões gigan­tes de Taxi Dri­ver. E se adi­vi­nha­ram é por­que nin­guém na vida se esque­cerá, jamais, que Iris é Jodie Foster.

A per­so­na­gem é ins­pi­rada numa mulher que o argu­men­tista Paul Sch­ra­der sedu­ziu num bar, para des­lum­brada sur­presa sua, de tão habi­tu­ado que o sorum­bá­tico Sch­ra­der estava a não con­se­guir sedu­zir nenhuma! Já no quarto do hotel, des­co­briu que a miúda só tinha 15 anos e era na vida o que Jodie seria no filme. Uma som­bra de desi­lu­são a velar-lhe o ego sedu­tor, deci­diu guardá-la a noite toda – à con­versa supo­nho –, e tele­fo­nou a Scor­sese, convidando-o a vir ter com eles para o pequeno-almoço: “Encon­trei a nossa Iris, tens de vir conhecê-la.”

Entre sumos de laranja e pan­que­cas, a doçura de um diós­piro tal­vez, ela revelou-lhes, como Nossa Senhora aos pas­to­ri­nhos, os três segre­dos que deram corpo à Iris de Taxi Dri­ver: puta, menor e dro­gada, tudo isso com uma certa allure, bem entendido.

Não é lenda de Sch­ra­der, essa miúda dos três segre­dos existe mesmo. Chama-se Garth Avery e cami­nha, de bar­riga à mos­tra, ao lado de Jodie, em mui­tas das cenas de pros­ti­tui­ção. Foi essa Iris da vida que pedi­ram a Jodie Fos­ter para ser no cinema.

É bom que sai­bam que Jodie tinha então 12 anos e era uma daque­las enjo­a­ti­vas crianças-estrelas da Dis­ney de fazer engo­lir punhos de tédio e comi­se­ra­ção a qual­quer inte­lec­tual que se assine na imprensa selecta, se me des­cul­pam o auto-retrato. Quando a con­vi­da­ram, Jodie disse: “Devem estar a brin­car comigo.”

Disse ela, mas a mãe, pro­du­tora de cinema, empurrou-a para o deson­roso papel: queria-a ao lado de De Niro, que já fora Don Cor­le­one no The God­father, part II. E queria-a, num papel tão cen­tral e cho­cante, fil­mada por Scor­sese, talento em ful­gu­rante ascen­são. Ou seja, um cora­ção de mãe nunca se engana.

Tudo o que a vida lhe rou­bara, Garth Avery, a ramei­ri­nha de 15 anos, ofereceu-o ao cinema, na per­so­na­gem de Iris: a roupa, a forma de andar, a des­pida ino­cên­cia do olhar, a ausên­cia de lirismo nas frases.

Há uma única enter­ne­cida cena em Taxi Dri­ver. Iris dança com Har­vey Kei­tel e der­rama nos bra­ços e no peito do seu chulo a infân­cia, as dores, a sua resig­nada ausên­cia de sonho. Quero acre­di­tar que, nessa cena, Jodie tenha, mais do nunca, incar­nado uma Garth que se des­pede, os olhos a fecharem-se-lhe em doçura e exaus­tão, antes de vol­tar a mer­gu­lhar no mais sór­dido ano­ni­mato. Nunca mais se soube dela. Nessa Iris, nos bra­ços de Kei­tel, mor­reu Garth Avery para nas­cer Jodie Foster.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

2 Comentários para “Pernas de franga, tacões gigantes”

  1. Não sei se ele vaga ou divaga pelos filmes. Só sei que Manuel relê os filmes, apresenta novas cenas, até então nunca vistas. Traz os bastidores e situações que não sei se reais ou fictícias.
    Muito prazer Garth Avery, não fosse o Manuel.

  2. Meu Caro Miltinho eu não tenho imaginação para inventar seja o que for. É mesmo tudo verdade. A Garth existiu mesmo, ainda que não tenha voltado a ser vista.

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