O pintor e o menino

Guignard pintava sonhos e os distribuía para os que o conheciam, os que o procuravam, os que o protegiam. Ensinou pintura para uma geração de artistas mineiros na escola que comandou no parque municipal de Belo Horizonte. Conheci muitos de seus discípulos, admiradores de suas lições, seguidores de sua estética. Os morros de Ouro Preto plantados de igrejinhas barrocas que ele nos legou me comovem. Guignard, pelo que dizem os que com ele conviveram, era um tímido. Mais: era um menino grande.

Meu amigo Luiz Alfredo registrou, em uma série maravilhosa de fotografias, o cotidiano daquele humilde servidor das artes plásticas que, não sendo mas tornando-se mineiro, revelou como poucos a alma que circula nas terras de Minas. Esse trabalho pode ser visto em museu de Ouro Preto ou nas páginas da antiga revista O Cruzeiro, que este jornal tem em seus arquivos.

Lembro-me de Guignard ao me lembrar de um amigo, indispensável, que nos deixou órfãos há quase oito anos. Meu eterno e querido Veveco, chefe supremo do Clube dos Gambás, memória constante em meus dias e de muita gente boa na cidade e no Brasil. A história que vou narrar foi ele que me contou.

Além da imaginação de montanhas e nuvens, Guignard se especializou em pintar retratos das pessoas. Alunos e, principalmente, as famílias importantes da cidade. Todas as casas da elite mineira guardavam em suas paredes as figuras reproduzidas pelo pincel do mestre. Esposas, maridos e filhos. Ter um quadro ou uma representação de seu rosto feita pelas mãos de Guignard era uma prova irrefutável de status.

O menino Veveco teve seu dia de modelo mas, passado algum tempo, não se lembrava mais. A vida prosseguia. Guignard pintando e Veveco brincando pelas ruas de Belo Horizonte. A criançada da época fazia seus próprios brinquedos. Papagaios, manivelas para empiná-los, jogos de botão, bolas de meia.

Diante de qualquer desafio, a meninada pensava em soluções e corria para resolver a questão.

Com o Veveco surgiu a necessidade urgente de construir um carrinho de rolimã. Os vizinhos tinham e ele também precisava de um, para descer as ladeiras de ruas e avenidas. Procurou em casa por madeira para realizar o que pretendia. Só encontrou, em cima de um armário ( mas que estava fazendo lá o retrato do menino?), um bom pedaço do material que procurava.

Trabalhou bem em seu projeto e, em pouco tempo, seu carrinho estava em ponto de bala. Não sei quando os adultos da casa deram conta do acontecido. O retrato se transformara em carrinho de rolimã.

Certamente houve uma bronca memorável, pois ele não se esquecia e ria disso mesmo passados muitos e muitos anos. A certeza que tenho é que o singelo Guignard aplaudiria a travessura do moleque. Meninos sempre se entendem.

Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em fevereiro de 2013.  

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