O dedo grande do pé

zzzzzzjohnwayne

Eu hei-de mexer esse dedo!” Ainda ouço a voz do coman­dante “Spig”, dei­tado de borco numa cama de hos­pi­tal. Frac­tu­rou a quinta vér­te­bra cer­vi­cal e a boca pequena dos médi­cos diz o que eles não lhe que­rem dizer. A para­li­sia bila­te­ral não o vol­tará a dei­xar andar.

Não se mexe, está de cu para o ar, a cara enfi­ada no buraco da cama de hos­pi­tal para poder res­pi­rar. Vê o mundo por um espe­lho que Jughead, o mari­nheiro – impe­dido, enfer­meiro, mais irmão do que um irmão – lhe pôs debaixo da cama, para que o revolte a impo­tente imo­bi­li­dade desse dedo grande do pé, que mexendo-se faria mexer o mundo.

“Spig” está num estado que nem Por­tu­gal. A vida para ele era vento, céu e mar, os coman­dos de um avião entre as nuvens. Não pen­sem que é só cinema. Frank W. “Spig” Wead exis­tiu mesmo e con­ven­ceu o Con­gresso a dotar a Mari­nha de avi­a­ção pró­pria. A sua obs­ti­na­ção inven­tou os majes­to­sos porta-aviões, esse sétimo de cava­la­ria dos oce­a­nos, patrió­ti­cas for­ta­le­zas de fogo e morte. Conseguiu-o fazendo trinta por uma linha: ater­rou com um avião na pis­cina de um almi­rante e esmur­rou os tipos de Exér­cito que anda­vam ao mesmo. Este homem fez estre­me­cer troikas.

Agora, “Spig”, que é John Wayne, está qui­eto e aban­do­nado. Obri­gou a cabe­leira, o corpo e tudo ruivo de Mau­reen O’Hara, sua mulher, a deixá-lo. Resta-lhe a com­pa­nhia de Jughead, Dan Dai­ley, bêbado, afi­ci­o­nado de cha­ru­tos, mulhe­rengo para quem nem no seu mais imper­feito juízo uma mulher se dig­na­ria olhar.

I’m gonna move that toe, I’m gonna move that toe” canta Jughead, neste Wings of Eagles de John Ford, sem saber que repe­tindo esse man­tra, e obri­gando “Spig” a fazer coro com ele, está a inven­tar o rap. Nem o facto de acom­pa­nhar o reci­ta­tivo a uku­lele me fará mudar uma vír­gula: John Ford fez de Dan Dai­ley e John Wayne os pri­mei­ros “rap­pers”.

Ah, tenho de me proi­bir esta mania da diva­ga­ção. O que inte­ressa é a ditosa pátria minha amada. É dela que que­ria falar. Por­tu­gal está de bar­riga para baixo, não mexe nem o dedo pequeno do pé quanto mais o grande. A mim só me ape­tece ser Jughead e gritar-lhe, “Vais, vais mexer esse dedo” e pô-lo a fazer coro, mesmo que seja em inglês para a troika per­ce­ber, “I’m gonna move that toe”.

Em miúdo fazia isto. Fechava os olhos e ante­ci­pava que estava nos luga­res onde que­ria ir e o meu pai não dei­xava. Sonhava com força e a bon­dade do meu pai rendia-se e dizia-me que sim. Sei que, como Jughead, hei-de ver a pri­meira vez que o pátrio dedo grande do pé se vol­tar a mexer. Quero ser o miúdo espan­tado e gago que o mara­vi­lhoso actor Dan Dai­ley tam­bém é ao ver mexer o feio e rude dedo do amigo. Como ele, have­mos de sair a cor­rer do quarto deste hos­pí­cio, bei­jar na boca as mais caqué­ti­cas enfer­mei­ras e des­maiar de ale­gria: o dedo grande de Por­tu­gal vol­tou a mexer.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia. 

The Wings of Eagles, no Brasil Asas de Águia.

3 Comentários para “O dedo grande do pé”

  1. Portugal está mesmo de barriga para baixo, não há dúvida.
    Mas o dedo grande voltará a mexer algum dia?

  2. Não só Portugal está de bruços. França, Espanha e Grécia deixam o cu a mostra. Já houve outras posições de quatro, cá veio D.João e sua corte.
    Há de se erguer, mexer o dedo, cérebros não faltam.

  3. O dedo há-de mexer, meus amigos. Temos é de inventar um rap que nos anime.

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