O Bolero de Dylan

Para nós, velhinhos, há sempre um consolo: costuma-se dizer que Brahms só compôs sua primeira sinfonia beirando os 60 anos.

Sempre se inventa um consolo.

Em geral, criam-se maravilhas quando se é jovem.

Quando somos jovens, nossos desejos são mais fortes. E provavelmente também nossa capacidade de criar.

Na música, há de tudo. Chico, por exemplo, compõe maravilhas depois de velho. São melodias e letras sutis – belíssimas, ricas, como devem ser as coisas que os gênios maduros fazem.

Caetano tem brincado de ser moderno. Caetano brinca de não ser velho, se aproxima de garotões e faz rock. Eu, pessoalmente, acho de uma chatice atroz, mas tudo bem se ele gosta – fazer o quê?

Gil tem composto menos. Paul Simon, que sempre compôs pouco, compõe cada vez menos.

Dos velhinhos que continuam compondo sempre, direto e reto, vejo Neil Young, Paul McCartney e Bob Dylan. Para eles é como se o tempo não passasse jamais. É como se, após os 50, 60 anos, tivessem a criatividade de garotos de 20, 30.

Acho que Neil Young e Paul McCartney são belíssimas pessoas. Pelo que sei dele, Paul Simon é uma pessoa complicada – mas e daí, se é um dos melhores autores de canções que jamais pisaram no planeta?

Quanto a Dylan, há sérias dúvidas. O mais provável é que seja um E.T. Um ser de outra galáxia, que veio nos visitar e, como nos filmes de ficção científica, adotou um corpo humano.

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Essas coisas me ocorreram porque, num fim de noite, ouvi, várias vezes seguidas, “Red River Shore”.

“Red River Shore” é uma das muitas composições de Dylan que não entraram em seus álbuns oficiais. Cada vez que vai gravar um disco, o cara compõe mais do que pode caber – e aí deixa outtakes, gravações que ficam de fora.

O que fica de fora de um disco de Dylan porque ele considera que havia outras canções melhores é melhor do que uns 99,99% dos compositores produzem.

“Red River Shore” ficou de fora de Time Out of Mind, de 1997. Time Out of Mind é um disco genial, em que Dylan apresentou uma impressionante quantidade de belas composições novas. Foi o primeiro disco com composições inéditas desde Under the Red Sky, de 1990. Deixou embasbacado todo mundo que o ouviu. A revista Newsweek dedicou capa a Dylan por causa do disco, e fez uma edição belíssima.

Em 1997 ele tinha 56 anos – ou havia 56 anos que, E.T., ele havia encarnado em um humano.

Em um texto que escrevi só pra mim mesmo, e que só muitos anos mais tarde publiquei neste site, eu disse: “Para mim, entre outras coisas, 1997 foi o ano em que Robert Allen Zimmermann fez o disco mais belo, mais trágico, mais profundo da sua imensa infinita carreira.”

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Não coube “Red River Shore” em Time Out of Mind. A canção só sairia em disco oficial de Dylan em 2008, no oitavo volume das Bootleg Series, as compilações que sua gravadora, a Columbia, espertamente soube fazer, transformando em oficiais gravações que teoricamente não seriam para chegar aos discos.

zzzzzzzzzdylan1A questão é que, com Dylan, tudo tem que ser aproveitado, posto em disco oficial, disponibilizado.

Como seria possível manter em segredo “Red River Shore”?

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Em “Red River Shore”, Dylan faz assim uma espécie de Bolero de Ravel.

A canção nem é tão longa assim – para os padrões dele. Tem 7 minutos e 34 segundos – coisa pouca, para quem gravou os 11 minutos e 20 segundos de “Sad-Eyed Lady of the Lowlands”.

A voz dele não se altera. É a voz do cara aos 56 anos, uma voz que jamais havia sido assim propriamente bela, com apenas um tempinho de exceção, no finalzinho dos anos 1960, iniciozinho dos 1970, uma voz mais fanha que os fanhosos das piadas, e que aos 56 anos saía com as evidências dos excessos de fumaça de cigarros de nicotina e de outras origens, fora outras droguitas mais.

A voz, então, não se altera. Vai lá cantando sem dicção perfeita, sem timbre belo, com as evidentes marcas do tempo e das muitas drogas do passado, sem alterações.

Mas o que o a voz nada bela – mas maravilhosa, expressiva, extraordinária, emocionante – diz é um poema belo de doer.

E o som que vem por detrás da voz de Dylan é um esplendor.

Como no Bolero de Ravel, a melodia simples vai crescendo.

Instrumentos após instrumentos vão se acrescentando aos violões e à suave percussão inicial.

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Quando estamos aí pelo meio dos extraordinários 7 minutos e 34 minutos dessa canção fantástica, e um grande número de instrumentos está tocando, ouvimos que há um toque mexicano forte.

Em 1973, Dylan se meteu a mexer com alguma coisa que soasse mexicana, ao trabalhar como ator e autor da trilha sonora de Pat Garrett and Billy The Kid, de Sam Peckimpah. Saiu daquela experiência com um álbum extraordinário e belíssimas canções. Uma delas, “Knocking on Heaven’s Door”, acabaria, por acaso, sendo uma das mais conhecidas de sua imensa, gigantesca obra.

Dylan passou por cada um dos gêneros musicais. Fez folk, blues, rock, pop, spiritual, gospel. Todo tipo de artista gravou suas músicas. “Knocking on Heaven’s Door”, por exemplo, foi gravada pelo Guns N’ Roses. Teve uma época em que minha filha adorava Guns N’ Roses – e aí vi que eles tinham feito uma bela versão de “Knocking on Heaven’s Door”.

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Fico ouvindo “Red River Shore” uma, duas, três, quatro vezes seguidas.

As músicas que a gente ouve uma, duas, três, quatro vezes seguidas são de uma categoria muito especial.

Se eu fosse um E.T. acabado de chegar à Terra e ouvisse “Red River Shore”, e não soubesse que Bob Dylan é também um E.T., consideraria que a humanidade tem pessoas de grande talento. E, nos relatórios aos chefes no outro planeta, defenderia a humanidade. Diria: “Eles sabem criar arte maravilhosa”.

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Eu achava que este texto estava pronto para ser publicado, mas percebi que não falei coisa alguma sobre a letra.

É uma canção de amor, uma triste canção de amor sobre um love gone wrong, para citar o título de um dos discos dele.

O narrador se apaixona, muito jovem, por uma mulher aparentemente mais velha, muitíssimo mais vivida que ele.

Ela diz para o garoto procurar sua turma. Vem na terceira estrofe:

Well, I sat by her side and for a while I tried
To make that girl my wife
She gave me her best advice and she said
Go home and lead a quiet life
.

Faz lembrar um pouco os filmes noir dos anos 40, 50. Uma mulher muito vivida, um homem inocente. Mas a mulher da praia do Red River não é uma femme fatale, uma mulher má que quer usar um pato, um pasqualo, para seus interesses. The girl from the Red River shore dá um chega pra lá no garoto apaixonado por ela: “vá pra casa e leve uma vida tranquila”.

Tipo assim: se ficar comigo, cara, você vai se ferrar. Vá pra casa e leve uma vida tranquila.

O narrador jamais irá conseguir se esquecer dela. A garota da praia do Red River vai persegui-lo ao longo de toda sua vida.

Essas coisas acontecem mesmo na vida real.

Bob Dylan é um E.T. que consegue compreender perfeitamente o que acontece com os terráqueos.

E exprime o que os terráqueos sentem como poucos outros gênios souberam fazer.

Maio e junho de 2013

 Red River Shore

(Bob Dylan)

Some of us turn off the lights and we live
In the moonlight shooting by
Some of us scare ourselves to death in the dark
To be where the angels fly

Pretty maids all in a row lined up
Outside my cabin door
I’ve never wanted any of ‘em wanting me
Except the girl from the Red River shore

Well, I sat by her side and for a while I tried
To make that girl my wife
She gave me her best advice and she said
Go home and lead a quiet life

Well, I been to the east and I been to the west
And I been out where the black winds roar
Somehow though I never did get that far
With the girl from the Red River shore

Well, I knew when I first laid eyes on her
I could never be free
One look at her and I knew right away
She should always be with me

Well, the dream dried up a long time ago
Don’t know where it is anymore
True to life, true to me
Was the girl from the Red River shore

Well, I’m wearing the cloak of misery
And I’ve tasted jilted love
And the frozen smile upon my face
Fits me like a glove

Well, I can’t escape from the memory
Of the one I’ll always adore
All those nights when I lay in the arms
Of the girl from the Red River shore

Well, we’re living in the shadows of a fading past
Trapped in the fires of time
I’ve tried not to ever hurt anybody
And to stay out of the life of crime

And when it’s all been said and done
I never did know the score
One more day is another day away
From the girl from the Red River shore

Well, I’m a stranger here in a strange land
But I know this is where I belong
I’ll ramble and gamble for the one I love
And the hills will give me a song

Though nothing looks familiar to me
I know I’ve stayed here before
Once a thousand nights ago
With the girl from the Red River shore

Well, I went back to see about her once
Went back to straighten it out
Everybody that I talked to had seen us there
Said they didn’t know who I was talking about

Well, the sun went down on me a long time ago
I’ve had to pull back from the door
I wish I could have spent every hour of my life
With the girl from the Red River shore

Now I heard of a guy who lived a long time ago
A man full of sorrow and strife
That if someone around him died and was dead
He knew how to bring ‘em on back to life

Well, I don’t know what kind of language he used
Or if they do that kind of thing anymore
Sometimes I think nobody ever saw me here at all
Except the girl from the Red River shore,

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