Mistérios

A forma como são grafados os nomes das nações indígenas brasileiras é para mim um mistério denso, impenetrável.

Claro que há muitos mistérios maiores, mais transcendentes, mais fundamentais. Quem sou?, onde estou?, para onde vou?, no sentido mais metafísico das interrogações, por exemplo. Há vida depois da morte? Há um Ser Supremo, ou somos mera obra de algum acaso? Mas onde começou o acaso – e por quê, e para quê? Ou o Big Bang não é um acaso, estava traçado? Mas estava traçado onde, e por quê, e para quê?

Embora adore o verso de Renato Teixeira – “o maior mistério é haver mistérios” –, acho que na verdade há mistérios demais na vida, e sem dúvida há centenas deles de importância muito mais fundamental do que a forma como se grafam os nomes das nações indígenas, mas o que fazer? Esse mistério – pequeno que seja, comparado a tantos outros – me intriga, me deixa perplexo.

zzzzzzzzcapaA perplexidade voltou com tudo a partir das quatro páginas de O Globo deste domingo com texto de Míriam Leitão e fotos de Sebastião Salgado, uma reportagem – belíssima, ao que tudo indica – que resultou de uma viagem dos dois grandes nomes aos confins da Amazônia maranhense, onde os bravos e vulneráveis Awá resistem ao avanço do homem branco. Os Awá, informa o jornal na primeira página “foram contatados a partir de 1979, a ampla maioria não fala português e alguns continuam fugindo”. “Um dos líderes da aldeia Juritik, Piraíma’á avisa: ‘Os madeireiros estão matando as árvores. Vão nos matar. Vou resistir, tenho coragem”.

Ainda na véspera, o sábado, na página 2, O Globo havia anunciado que a série de reportagens de Míriam Leitão e Sebastião Salgado começaria no domingo. “O diretor de Redação, Ascânio Seleme, ouviu a proposta com entusiasmo e começou a preparação da viagem. Não foi fácil. Foram várias idas à Funai para falar com a Coordenadoria dos Índios Isolados e de Recente Contato.”

A própria existência na Funai de uma Coordenadoria dos Índios Isolados e de Recente Contato já me parece um mistério, mas vamos em frente. Vamos ao mistério que me atormenta mais neste momento.

Por que os índios são Awá, assim, com maiúscula, dabliú e no singular?

Por que eles não são avás?

Por que os Yanomami são assim, com maiúscula, ipisilon, sem acento e no singular, e não ianomâmis?

Se Míriam Leitão e Sebastião Salgado tivessem ido fazer uma reportagem, digamos, sobre os seringueiros do Acre, eles seriam grafados de Akreano, assim, com maiúscula, ká e no singular?

Se tivessem feito uma reportagem os habitantes de uma remota aldeia da Sicília, eles seriam tratados como Sycylyano, e não como sicilianos?

O fato de eles serem índios exige tratamento diferenciado?

Então por que os apaches são apaches, os sioux são sioux, os navajos são navajos, os comanches são comanches?

Será que é uma questão ideológica? Que, pelo fato de eles serem norte-americanos, do Império do Mal, devem ter tratamento menos rebuscado do que os nativos de Nuestra América Latina?

Mas não vejo os jornais grafarem os Maya, os Azteka, os Inka.

Ah, sim: e por que sempre que se fala de índios se diz que eles são bravos?

Mistérios.

É. Mistérios neste mundo de mistérios.

4 de agosto de 2013

3 Comentários para “Mistérios”

  1. Pois é caro Sérgio Vaz…mistérios!
    Adorei o texto, sempre com a usual fluidez Vazniana.

    Agora… pera lá, cê tá cri-cri-prá-carái e pentelho mesmo hein???

    Os nomes dos índios americanos nunca foram diferentes dos que conhecemos, nem em inglês, mas… por exemplo, eu tenho aqui uma funcionária que se chama Jhulyan. Se ela fosse chefe-mor de uma tribo, acho que eles seriam os Jhulyanos, certo?
    Sempre pergunto o que a mãe tava sentindo quando colocou este nome na Jhulyan, e ela apenas rí. Não sei quem foi a mãe dos Awa ou dos Yanomami, mas com certeza isso foi noutra época não vai dar para cobrar isso de ninguém. Não acho justo vc cobrar dos jornais que tentem reinventar a gramática. Num bom português, vc pode falar e escrever Ianomâmi (sem o “s”) e Astecas tanto quanto Yanomami e Azteca.

    Agora, Avás é meio puxado… Auás talvez, mas… Como vc é Vaz, tá querendo puxar é pro seu lado.

    Os “s” no final têm a ver com o conjunto e com o suposto “homens” antes dos nomes. Por exemplo, vc não fala “Os mehinakos” e sim “os mehinako” do mesmo jeito que não se fala ou escreve “Os Nambikwaras e sim “Os Nambikwara”

    De manhã, após o café da manhã, vc não passa os faxes e sim passa seus fax prá Sabesp, certo?

    PS. Num liga não… Na verdade eu adorei o texto e a intriga. Mistério mesmo só com a Aghata.

    bjos

    Cunhado

  2. Aprendi na escola nomes como Tupis, Gês e Tapuias. Tamoios etc…

    Novas tribos foram e estão sendo descobertas, tem índio para cacete e bravos.

    Os Awás originam-se dos Awásene: Conta-se que ainda são autênticos selvagens com cultura tipicamente marginal.Não possuem instrumentos de ferro nem arcos, nem flechas; somente artefatos líticos e, como arma para matar usam cacetes toscos aos invés de bordunas. Também não fazem roçados. Exclusivamente caçadores, cercam a caça na ocasião em o animal vai comer,pegam-no de preferência vivo
    e comem a carne crua. Andam nus,são tidos como ferozes e temidos, só atacam no escuro.
    (fonte: Tribos indígenas do Pará setentrional. Frei Protásio Frikel)

    Serão em breve dizimados. O nome Awás tem grafia dos homens civilizados, que gostam de usar W, K, Y.

    Salgado e Miriam estão preservando para a história este bando de selvagens. São dois ícones da nossa atual e civilizada imprensa.

  3. Música LINDA e COMOVENTE:

    Ruas da Cidade
    (CLUBE DA ESQUINA)

    “Guajajaras, tamoios, tapuias
    Tupinambás, aimorés,
    Todos no chão

    (…)

    Passa bonde, passa boiada,
    Passa cavalo, avião,
    Ruas e Reis”

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