“Caminhando” e a cegueira ideológica

Quarenta e cinco depois, a cegueira ideológica continua perseguindo a canção “Caminhando”, que Geraldo Vandré compôs em 1968.

Quando as coisas, as pessoas, as canções, as obras de arte, o mundo se transformam em Fla x Flu, nós x eles, os bons x os maus, ame-o x deixe-o, por cega paixão ideológica, tudo fica pequeno, mesquinho, imbecil.

Por cega paixão ideológica, umas 15 mil pessoas reunidas no Maracanãzinho para a final da etapa brasileira do III Festival Internacional da Canção, em 1968 vaiaram Tom Jobim e Chico Buarque, dois dos mais perfeitos artistas que já pisaram no solo do planeta. A vaia ensurdecedora veio no momento em que foi anunciado que “Caminhando” era a segunda colocada – a imensa maior parte do público queria “Para Não Dizer que Não Falei de Flores”, ou “Caminhando”, em primeiro lugar, e então o Maracanãzinho veio abaixo.

Geraldo Vandré

Muito provavelmente aquela foi a maior vaia que artistas do quilate de Tom e Chico, e que obras de arte como sua canção “Sabiá”, receberam em toda a História.

Não dá para comparar com as vaias dos tradicionalistas, os puristas da música folk, haviam dedicado a Bob Dylan, poucos anos antes, quando ele abandonou o folk e aderiu ao rock.

As vaias do Maracanãzinho foram mais virulentas.

Não se tratava de uma opção estética – era ideologia pura.

Como se sabe, Tom e Chico não tinham nada a ver com a ditadura dos milicos – muito antes pelo contrário. “Sabiá” era uma canção anti-ditaduras, uma extraordinariamente bela nova canção do exílio, que o poeta Gonçalves Dias com toda absoluta certeza gostaria de ter assinado, vivesse ele naqueles tempos sombrios, e não nos outros tempos sombrios em que vivera.

Tom e Chico compuseram juntos, se não me engano, dez músicas – todas elas obras-primas. “Sabiá” é uma das mais belas – uma poesia fortíssima mas delicada, rica, sofisticada, enrodilhando-se numa melodia de suprema beleza, com um gosto forte de nostalgia, de saudade do que poderia ter sido belo, do que tinha sido de fato belo, e de repente havia se tornado horroroso, num período tão pequeno de tempo, o 1958 de tantas esperanças e possibilidades (bossa-nova, cinema novo, Novacap, novo tudo) e o 1964 que instaurou a quarta-feira de Cinzas no país.

“Sabiá” era (e é) tão rica, melodicamente, quanto era (e é) pobre, melodicamente, “Caminhando”.

“Sabiá” era sutil, suave. E “Caminhando”, com seus dois únicos acordes (como se diria à exaustão depois), era firme, forte, violenta. “Caminhando” era perfeita para o momento que se vivia, cabia no momento como uma luva.

O público do Maracanãzinho queria se expressar alto e bom som contra a ditadura dos milicos. “Caminhando” era sua “Marselhesa”.

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Naquela fase brasileira do Festival Internacional da Canção houve dois discursos furibundos. O primeiro foi de Caetano, que não conseguiu cantar sua ousadíssima, nada assobiável “É Proibido Proibir”, no Tuca, ali ao lado, na eliminatória paulista. A gravação ao vivo de Caetano discursando, caetanamente puto com a platéia, é uma absoluta maravilha. “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? (…)Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. (…) Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos!”

O segundo foi o de Vandré quando subiu ao palco do Maracanãzinho para apresentar “Caminhando” como segunda colocada – 15 mil vozes vaiando o júri.

“Gente, gente”, dizia ele, naquele sotaque paraibano arretado. E aí ele fala, fala, e diz a frase definitiva: “A vida não se resume a festivais”. E, dito isso, toca ao violão seus dois acordes, e canta com aquela voz extraordinariamente bela que Deus lhe deu os versos marselhesamente belos da canção criada para contestar aquela ditadura específica, naquele momento específico.

“Sabiá”, a primeira colocada, foi cantada por Cynara e Cybele, duas das meninas do Quarteto em Cy. Tom e Chico, dois dos maiores artistas que este planeta já teve, ficaram ao lado delas no palco, ouvindo vaias.

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Sete anos depois que o país já havia sepultado a ditadura dos milicos, em 1992, o genial Gilberto Braga escreveu Anos Rebeldes, ao mesmo tempo uma sequência de Anos Dourados, de 1986, que teve como tema canção (maravilhosérrima) da dupla Tom-Chico e também uma nova, independente série. De maneira arguta, inteligente, Anos Rebeldes cita, diversas vezes, a celeuma “Sabiá” x “Caminhando”.

Lá pelas tantas, bem pelo final, creio (preciso rever Anos Rebeldes, assim como Anos Dourados), o personagem interpretado por Cássio Gabus Mendes, um firme ativista anti-ditadura, reconhece para seu par romântico, o papel da fantástica Malu Mader: “Você tinha razão. ’Sabiá’ é muito mais belo que ‘Caminhando’”.

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zzzzzvandré2E é aí que está.

Como assim, mais bela?

Como comparar um morango com uma pera?

Como dizer que a carne de tatu é mais gostosa do que a carne da cotovia?

Como dizer que o verde é mais belo que o amarelo?

Não há – objetivamente falando, entendendo – nenhuma canção “melhor” que outra. Ou filme, ou disco, ou peça, ou romance.

Tudo é uma questão de gosto, e gosto não se discute, e o que seria do amarelo se todos gostassem do vermelho?

Lista de melhores, festival, Oscar, tudo isso é besteira, bull shit.

Não há formas de se comparar uma obra de arte a outra para dizer que uma é melhor e a outra é pior.

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Senti vontade de escrever sobre “Caminhando” por causa de um texto idiota da revista Veja.

Está na revista Veja desta semana, com data de 4 de setembro, a seguinte afirmação:

“Censurada pela ditadura, ‘Prá Não Dizer Que Não Falei das Flores”, de Geraldo Vandré’, foi regravada por Simone em 1979 e teve uma sobrevida nos protestos dos cara-pintadas contra Collor, em 1992. Hoje, porém, tem importância mais arqueológica do que artística.”

Então é isso o que falei lá no início do texto: 45 anos depois, a cegueira ideológica continua perseguindo a canção “Caminhando”.

Em sua visão turvada pela paixão ideológica, em seu direitismo fanático, tea-pártyco, em seu fanatismo que só permite ver o mundo como um Fla x Flu, nós x eles (exatamente a mesma visão do lulo-petismo, só que pelo outro extremo), a revista Veja apequena a arte.

Quando morreu Mercedes Sosa, Veja cometeu, na minha opinião,  um dos maiores pecados da grande imprensa nos últimos muitos anos. Por discordar da ideologia da artista, tratou-a – em um ridícula, nojenta, vomitativa nota – como se ela fosse uma coisa menor.

O fato de Mercedes Sosa ter sido uma porta-voz de opiniões de esquerda não a diminui, de maneira alguma, como artista.

Os artistas, a arte, ela e eles estão muito acima das categorizações que a ideologia pode fazer.

A rigor, não interessa o nome da pessoa que assina o texto que tenta reduzir “Caminhando” ao lixo da história. Ele pode acreditar no que escreveu, ou até não. Ele, sim, é o lixo da história.

“Caminhando” é grande.

Tanto quanto “Sabiá”.

Não é culpa de Vandré, nem de Tom & Chico, que suas canções tenham tido que disputar qual era a melhor.

Eu não sei qual é a melhor.

Me emociono cada vez que ouço cada uma delas.

E, ao contrário do que tenta dizer o texto safado da Veja, “Caminhando” não foi apenas gravado por Simone em 1979. Só para dar dois exemplos, Ana Belén fez uma gloriosa gravação da canção em espanhol, e Sergio Endrigo fez uma igualmente emocionante gravação em italiano.

A revista Veja, do alto de seu um milhão de exemplares vendidos, é cocô do cavalo do bandido diante da beleza de “Caminhando”.

4 e 5 de setembro de 2013

Para ouvir no YouTube:

Geraldo Vandré no Maracanãzinho;

“Caminhando”, com Sérgio Endrigo;

“Caminhando”, com Ana Belén;

“Caminhando”, com Simone;

“Sabiá”, com Chico e Tom;

“Sabiá”, com Nara Leão;

“Sabiá”, com Elis Regina;

“Sabiá”, com Frank Sinatra.

 

6 Comentários para ““Caminhando” e a cegueira ideológica”

  1. Sérgio, belo texto, emocionante, escrito por quem entende de música e da vida. Quanto à Veja, é por essas e outras que deixei de assinar há muito tempo.

  2. Grande texto.
    Somos todos iguais, braços dados ou não.
    Sabiá mais bonita segundo Gilberto Braga.

    Caminhando, nosso hino eternizado e cantado 45 anos depois, pelas ruas, camos e construções,caminhando e cantando e seguindo a canção

    Tom e Chico anteviram em Sabiá o exílio de Vandrè:

    “Vou voltar
    Sei que ainda vou voltar
    Não vai ser em vão
    Que fiz tantos planos
    De me enganar
    Como fiz enganos
    De me encontrar
    Como fiz estradas
    De me perder
    Fiz de tudo e nada
    De te esquecer”.

    Ambas as músicas são ideologicamente enganjadas, uma fala de resistência ou de exílio. Lindas!

    Quanto a VEJA, o fim se aproxima, está agonizante, vide a redução de titagem e anunciantes.

  3. Li e reli o artigo. Acho que ele se resume em um cego ideológico dizendo que o outro também é cego. Portanto, declaro o empate entre o cego ideológico que acusa o outro de cegueira.

  4. Anos Rebeldes não é de 2002, e sim do começo da década de 90, o personagem citado que seria interpretado por Felipe Camargo na verdade foi interpretado por Cássio gabus Mendes, texto lúcido mas com falhas que comprometem a estrutura toda, de toda forma é válido pelo conceito!

  5. Opa!
    Muitíssimo obrigado, caro Rafael, por enviar essas correções! Meu Deus, foram dois erros grosseiros, crassos, absurdos. Claro, claro: “Anos Rebeldes” é de 1992. E Felipe Camargo não está na série, o ator que faz o par romântico da personagem de Malu Mader é Cássio Gabus Mendes.
    Já corrigi. Graças a você. De novo, muitíssimo obrigado!
    Sérgio

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