A esplêndida luz do mal

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Jurei que John Wayne era o meu único herói. Pro­tes­tos de fide­li­dade chei­ram sem­pre a men­tira. Tenho tan­tos, mais heróis, que ima­gino só meus. Como Lord Jim que se refez herói car­re­gando às cos­tas um fardo de negra culpa. Ou o homem a quem Faulk­ner cha­mou Harry nas Pal­mei­ras Bra­vas, e que, no fim do romance, entre a dor e o nada, esco­lhe a dor.

Mas hoje vai ser dia de vilões, dos maus sem os quais os heróis não teriam prés­timo. Dia de Eva, maçã e ser­pente? Dia de Cathy Ames, a mãe de alma defor­mada de A Leste de Paraíso? De Lady Mac­beth que invoca os espí­ri­tos para que não a cor­rompa a menor rés­tia de piedade?

Só mulhe­res? Homens, tam­bém. Harry (o sem­pre can­sado Robert Mit­chum) que mata viú­vas para maior gló­ria de Deus e, em The Night of the Hunter, per­se­gue impla­cá­vel, rio abaixo, um par de cri­an­ças ino­cen­tes. Pior do que Mit­chum, Lee Mar­vin. Mau como as cobras? Dizer isso ou nada é quase a mesma coisa. Os maus de Lee Mar­vin são maus de cru­el­dade física. Fazem mal mago­ando alguém na carne. Em The Big Heat, des­fi­gura a cara da nar­cí­sica Glo­ria Grahame vazando-lhe em cima o café a fer­ver da cafe­teira que estava ao lume, para que nunca mais ela se volte a ver ao espe­lho. Só há uma forma de nos livrar­mos de tanto mal, é matá-lo e ámen.

Mas o mal mais bonito, o de que mais e sem­pre gos­ta­rei é o de Emma, a outra mulher de Johnny Gui­tar, único wes­tern em que duas mulhe­res, ela e Vienna (Joan Craw­ford), se batem em duelo. Emma, inter­pre­tada por Mer­ce­des McCam­bridge, é o mais feliz rosto do ódio. É ner­vosa, agi­tada, voz estrí­dula, a boca desenhando-lhe um esgar, semi-riso de pra­zer de tanto odiar. Em Johnny Gui­tar, Emma só tem um objec­tivo: des­truir Vienna, a dona do saloon. Quer acusá-la de assal­tos que Vienna nunca pode­ria ter feito e mano­brar os homens para que a enforquem.

Vinda da escu­rís­sima noite, Emma chega de negro, e na mais estar­re­ce­dora cena do filme, inter­rompe uma ima­cu­lada Vienna, de branco ao piano. Os homens que­rem per­doar Vienna, mas Emma traz uma luz, luci­fe­rina, a dançar-lhe nos olhos: “No, I’m not satis­fied”, grita. Nunca, nunca está, nunca estará satis­feita. A não ser, no fim da cena, quando as cha­mas irrom­pem e con­so­mem o salão. É então que sai de novo para a noite escura, às arre­cuas para con­tem­plar melhor cada milí­me­tro de des­trui­ção e se vol­tar para a câmara, já em muito grande plano, rosto afo­gue­ado, olhos em cha­mas e, flor do mal, o tão per­feito e feliz sor­riso dese­nhado nos infla­ma­dos lábios.

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O mal é o fogo desse esplên­dido riso, o mal é o fré­mito que lhe faz estre­me­cer o corpo, que lhe faz estre­me­cer, quero crer, a íntima, lác­tea carne que as negras rou­pas escon­dem. Assusta tanto que seja tão bonito o mal. E assusta mais por­que pode­ria ser o sacu­dido riso, o fré­mito de cada um de nós.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

A Leste do Paraíso, no Brasil Vidas Amargas.

The Night of the Hunter, no Brasil O Mensageiro do Diabo.

The Big Heat, no Brasil Os Corruptos.

 

3 Comentários para “A esplêndida luz do mal”

  1. Manuel dá o tom.Seja tão bonito o mal.
    Assusta o belo e gelado olhar do mal de Henry Fonda em “Era uma vez no oeste”. Não sei se o belo olhar mau foi exigência do diretor Leone ou se atributo natural do velho herói Henry.

  2. Bem lembrado esse olhar de Fonda. Julgo, Nosso Medo, que o velho Leone teve um bom palmo de responsabilidade.

  3. O comentário é meu. Nosso medo é codinome para outros fins.
    Manuel mata minha curiosidade sobre a parte da responsabilidade do Leone pela beleza do olhar mal de Fonda.
    Saudações.

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