Um pouquinho de Maceió

Nunca fui a Fortaleza, nem a João Pessoa – as duas únicas capitais do Nordeste que não conheço. Mas estive agora em Maceió pela terceira vez.

Foram dias gostosos, suaves, tranquilos, estes, eu com minha filhota.

Que sorte grande um pai poder viajar com a filha adulta. Em geral, os filhos adultos tendem a não gostar muito da companhia dos pais velhinhos, ultrapassados, caquéticos.

Aconteceu um tanto por acaso, um tanto porque era para acontecer. Fernanda conseguiu duas semanas de férias; estava exausta, precisando descansar, recarregar baterias. O Carlos estava cheio de trabalho, assim como a Mary. Insisti com Fernanda para ela pesar e pensar bem antes de decidir se queria viajar sozinha ou em má companhia. Ela não gosta de viajar sozinha, e então preferiu a má companhia.

Mary fez um levantamento de possíveis destinações. Acho que os finalistas foram Morro de São Paulo, Itacaré, Praia do Forte e Maceió. Fernanda gostou da idéia de repetir Maceió – o Jatiúca tem essa coisa perfeita de estar ao mesmo tempo fora e dentro da cidade; se desse vontade de ficar lá o dia inteiro sem sair, perfeito; se desse vontade de caminhar, passear, jantar fora, perfeito. De minha parte, adorei a escolha.

Penso que fui uma companhia agradável, porque deixei as coisas correrem como minha filha queria. Não propunha muita coisa – deixava para ver o que ela queria. E não recusava nenhuma proposta dela – até porque as propostas eram sempre gostosas.

Ficamos juntos boa parte do tempo – mas eu dava a ela liberdade para não se prender a mim.

O melhor exemplo disso foram nossas caminhadas nos fins de tarde, e as duas vezes em que saímos para pedalar nas bicicletas postas para alugar bem do lado do Jatiúca. Saíamos juntos do hotel; já no calçadão, ela desembestava à frente, para fazer o treinamento, o exercício, e eu ia indo devagar, maneiro, velhinho. Cruzávamos um com o outro em algum trecho do calçadão entre o Jatiúca e a Ponta Verde, e depois nos reencontrávamos no flat. A mesma coisa nas bicicletas – ela desembestava, eu ia devagar, maneiro.

Durante o dia, cadeira ao lado da piscina, cada um com um bom livro. Eu sempre na sombra, Fernanda tomando sol com cuidado.

 ***

Foi minha terceira estadia no Jatiúca, a segunda da Fê. Nós dois lá pela primeira vez desde setembro de 2000 – quase 12 anos atrás.

A cidade cresceu demais. Inchou. Dava pra ver isso desde o longo e demorado percurso do aeroporto até o hotel. Desembarcamos por volta das 16h, e chegamos ao Jatiúca por volta de 17h30. O trânsito estava um horror. E, por toda a parte, havia novos prédios, prédios em construção. Trânsito de cidade grande, prédios como em cidade grande.

O motorista do táxi disse que Maceió está com cerca de um milhão de habitantes. Não acreditei muito. Mas vejo agora os dados do IBGE: a população da cidade hoje é de 932 mil. Em 1991, eram 629 mil; em 2000, eram 797 mil.

Meu Deus do céu e também da terra.

Talvez mais impressionante que o crescimento da população seja o crescimento da classe média, das classes médias.

O número de restaurantes bons, de bom nível, aumentou de uma maneira geométrica, desproposital. Naquela região entre o Jatiúca e a ponta da Ponta Verde surgiram dez, talvez 20 lugares novos, bons. Que estão sempre cheios. É impressionante.

 ***

Como impressionante também é a visível presença da tal da nova classe média, a classe C, nos lugares turísticos, nos vôos. No vôo São Paulo-Maceió, era impressionante o número de pessoas com aparência mais humilde, de classe C.

(De volta a São Paulo, veria numa nota da coluna do Ancelmo Gois que, em 2011, pela primeira vez, o número de pessoas em vôos interestaduais ultrapassou o número das que viajaram de ônibus.)

Mais de 17 anos de estabilidade da moeda e de maior distribuição de renda fazem de fato uma diferença fenomenal. E aqui não importa a coisa de o PT chamar para si toda a honra, e a verdade dos fatos ser de que a honra tem que ser dividida igualmente entre os oito anos FHC e os nove anos de lulo-petismo. O que importa é que a melhor divisão de riqueza é hoje visível no país.

E aí não dá para deixar de lembrar do Chile no início de 1973. Era tanta gente que antes não consumia e estava então consumindo que faltava tudo. (Claro: as coisas não faltavam apenas porque havia mais gente consumindo; havia o claro boicote dos produtores, os locautes, as greves de caminhoneiros.) Faltava lugar nos ônibus, nos trens, não havia táxi, não havia sabonete. E ouvimos o Zé Maria Rabello, então exilado lá, nos dizer, a mim e ao Guiminha: é, meu, não se distribui riqueza impunemente.

 ***

Como esta foi uma viagem de férias férias, de procura do absoluto descanso, eu não conseguiria, nem de longe, fazer uma anotação tipo Turista Acidental. Vivemos pouco Maceió – fomos para lá exatamente para não ter surpresas, necessidade de fazer passeios, conhecer lugares. Ficamos a imensa maior parte do tempo dentro do Jatiúca mesmo – nosso contato com a cidade foi apenas no calçadão entre os bairros de Jatiúca e Ponta Verde, com apenas uma esticada até o Jaraguá, mais ao Sul, perto do Centro.

Mas gostaria de registrar sobre duas pessoas com quem conversamos um pouquinho. Uma tem nome; da outra, não ficamos sabendo.

Ana é mineira de Viçosa; hoje é maître (Deus meu, como será o feminino de maître?) do Akuaba, um belo restaurante no bairro de Jatiúca. Veio falar com a gente. É uma mulher forte. Mudou-se para Portugal tempos atrás, virou gerente do McDonald’s, casou-se com um português que trabalha em cruzeiros tipo Linea C, teve filhos na Europa, morou em diversos países europeus e nos Estados Unidos. Agora, aí passando dos 40 anos, creio, quis voltar, trouxe o filho mais novo – a mais velha está concluindo o curso médio nos Estados Unidos e quando terminar vem também para o Brasil. Voltou para Viçosa, ficou lá uns meses com a familia, distribuiu currículos na internet, e logo foi chamada pela dona do Akuaba. O filho da dona, garotão jovem, fez curso no Institute Paul Bocusse – o diploma dele está à vista no lugar. Fê já tinha lido sobre ele, sobre o restaurante; conhece esse mundo, gosta dele.

Há pessoas que batalham na vida e dão certo, enquanto outras não dão – me peguei pensando, enquanto via essa moça Ana, de Viçosa, MG, e me lembrava de parentes, amigos, que se iniciaram na arte da cozinha mas não foram adiante.

A moça cujo nome não sabemos, conhecemos no sábado, 16, numa hamburgueria chamada Mostarda, na orla. Vi essa hamburgueria numa das caminhadas e tive vontade de ir lá. Fica bem ao lado de um McDonald’s, e Fê se perguntou, enquanto chegávamos lá, como era possível estabelecer uma hamburgueria bem ao lado de um McDonald’s. Pois se estabeleceu, e deu certo. O lugar é bem tratado – uma versão só um pouquinho menos sofisticada que o The Fifties da Vilaboim. Decoração de freak for TV – fotos de séries dos anos 50, 60, A Feiticeira, Mulher Maravilha, Magnum, essas coisas.

A moça que nos atendeu – inteligente, safa, rápida de raciocínio, simpática – é de Paulo Afonso, BA, ali bem pertinho de Alagoas, apenas do outro lado do Velho Chico. Estudou Letras em universidade em Paulo Afonso. Curso terminado, poderia escolher entre a distante Salvador e a bem mais próxima Maceió. Escolheu esta, mas, exatamente como o Sérgio Vaz que chegou a São Paulo aos 18 anos pensando em estudar cinema na ECA e acabou sendo primeiro office-boy e depois vendedor de chucks na Florêncio de Abreu, virou garçonete de hamburgueria, enquanto espera uma oportunidade melhor.

Contou para os dois fregueses que tem sentido uma grande dificuldade em Maceió, nas tentativas de conseguir um emprego na área que domina, na área pela qual possui um canudo. As pessoas em Maceió rejeitam quem vem de fora, disse ela. Há preconceito contra quem vem de fora, algo comum na província.

Ela não disse com todas as letras, mas pareceu implícito que há preconceito dos brancos das faculdades e dos colégios de Maceió não apenas contra quem vem de fora, mas contra quem, como ela, tem pele morena e origem humilde.

Me ocorreu – embora eu tivesse certeza de que não conseguiria transformar intenção em gesto – que eu poderia, ou melhor, deveria falar da moça sem nome para a Ana, que está formando seu próprio time no Akuaba, um restaurante bem mais importante do que a hamburgueria do moço freak for TV.

Passei no Mostarda duas vezes, para tentar conversar com a moça, pegar seu telefone, e, caso ela concordasse, repassá-lo para a Ana do Akuaba. Nas duas vezes, ela não estava lá. (O lugar fica aberto quase 24 horas por dia, tem vários turnos, e passei lá nos horários em que ela não estava.)

Não tem problema algum – a não ser, talvez, para o meu ego, que teria ficado inflado se eu tivesse conseguido fazer a ponte entre as duas. A moça cujo nome Fê e eu não ficamos sabendo vai se dar bem. É uma batalhadora, tem inteligência, tem força. Vai dar certo na vida – dando aula de línguas, ou não.

O garoto Sérgio Vaz não passou o resto da vida vendendo chucks na Florêncio de Abreu. A moça de nome desconhecido certamente não estará no Mostarda no ano que vem.

 ***

A violência é problema sério, imenso, gigantesco, em Maceió. Como no mundo todo.

A criminalidade tem atingido índices altíssimos, alarmantes.

Na semana mesmo em que estivemos lá, houve um crime impressionante. Um médico conhecido, conceituado, José Alfredo Vasco Tenório, de 67 anos, andava de bicicleta no Passeio Vera Arruda, no bairro de Jatiúca, quando foi interpelado por dois garotos. Não quis entregar a bicicleta velha, usada – e morreu com balaços no tórax.

Os jornais de Maceió (são três diários, e quatro semanários) estampavam manchetes dia após dia sobre a violência, a criminalidade. Alagoas tem a maior taxa de assassinatos do país – 67 homicídios por 100 mil habitantes, cinco vezes maior que a de São Paulo. E a taxa de resolução de crimes de morte é menor que 10%, ante 50% em São Paulo.

Maceió é uma cidade agradabilíssima, maravilhosa, mas está no mundo, e não em alguma ilha da fantasia. Tem, como toda cidade grande, imensa violência – além de coisas menores como trânsito ruim, carros demais. Não tem algumas vantagens das metrópoles, como de vez em quando um show de Bob Dylan – mas tem muitas das desvantagens delas. Parece, nisso aí, de uma certa forma, Curitiba – com a vantagem de que não tem frio, tem praia, tem brisa, e não tem curitibanos.

 ***

No momento em que chegamos ao Jatiúca, no finalzinho de tarde (no inverno, em Maceió, chove, e o sol se põe às 17h30, para se levantar pouco depois das 5h), tive uma daquelas sensações de felicidade absoluta. Tudo estava absolutamente igual a 12 anos atrás.

Uma das coisas mais difíceis de se ver, neste país, é algo absolutamente igual era alguns anos atrás.

Já cansei de escrever sobre isso – essa coisa de os lugares mudarem completamente.

O Jatiúca me pareceu o Jardim do Paraíso, the Garden of Eden – igualinho era 12 anos atrás.

Me lembro de Neil Young cantando a canção maravilhosa de Ian Tyson, “Four Strong Winds”. A gravação de Neil Young, com a voz de Nicolette Larson colada à voz taquara rachada dele, no disco Comes a Time, de 1978, é uma maravilha absoluta, e a mais marcante para mim, embora a música tenha tido outras belas gravações, como a de Marianne Faithfull, a de Judy Collins, a de Dave Van Ronk.

Four strong winds that blow lonely, Seven seas that run high, All those things that don’t change, Come what may. If the good times are all gone, And I’m bound for moving on. I’ll look for you if I’m ever back this way.

Tenho um imenso amor pelas coisas que não mudam nunca, aconteça o que acontecer. All those things that don’t change, come what may.

O Jatiúca vai mudar. As obras começam daqui a pouco mais de um mês, em agosto.

O Jatiúca tem hoje seis alas de apartamentos, mais o prédio de oito andares, o prédio do flat. Vão construir mais quatro alas, mais uma piscina, e vão refazer a piscina existente, que é lindíssima, em perfeita harmonia com os coqueiros que a cercam.

Não sei quantos daqueles magníficos, majestáticos coqueiros da altura de seis andares de prédio vão ser sacrificados com essas obras – mas seguramente serão muitos.

Vai piorar.

Estão perigosamente querendo matar a galinha dos ovos de ouro.

Ainda bem que minha filha me fez ir ao Jatiúca que parecia que não iria mudar nunca – all those things that don’t change, come what may.

Não volto lá. Esta é uma certeza que não mudará nunca, come what may: não volto lá.

Mas, enquanto não mudava, como era lindo aquele lugar. Como tenho sorte na vida, por ter estado lá três vezes, uma vez com Mary, uma vez com Mary e Fernanda, uma vez com Fernanda.

 23 de junho de 2012

5 Comentários para “Um pouquinho de Maceió”

  1. Que delícia de passeio, em?Além de Maceió,Jatiuca, bicicletas, nãofazer nada… Fezinha! Marynha e eu estivemos lá ,creio que em 79 ou 80. O Ponta Verde estava sendo inaugurado. De lá até o Jatiuca era só uma praia deserta. Maravilha! Foi nosso primeiro passeio juntas.Creio que por ter sido tão bom, deu início a todas os outros que fizemos, semore maravilhosos. Não consigo fazer idéia de como está essa Maceió hoje! Não sei se quero voltar. Acho que não. Cadê minha foto? Estou curiosa para vê-lo com bochechas branquinhas.
    Abração
    Sogrinha

  2. Sérgio querido, quer dizer q foi a Maceió q vc foi?Só sabia q tinha ido ao Nordeste!E com a querida filhota. E não perde a mania de se chamar de velho com apenas 60. Hoje em dia 60 é o início da vida, vc não sabia?Com a Medicina e os tratamentos estéticos tão avançados as pessoas mantém a saúde e a aparência bonita por muito mais tempo. Estou aguardando o seu telefonema, certo?Beijão. Guenia.
    http://www.sospesquisaerorschach.com.br

  3. Só para lhe causar inveja, Sérgio, comunico que eu AINDA estou de férias em Maceió. Pena não ter ido para os lados do Jatiúca e perdido a oportunidade de encontrá-lo no calçadão. Reconheceria pela foto que está na internet.
    Graças aos preços absurdos dos imóveis em Brasília, comprei um apartamento de 127 metros na Ponta Verde com o dinheiro da venda de uma quitinete de 35 metros na Capital Federal. Venho três vezes por ano a Maceió e acho que estou virando alagoano amador. Também fico impressionado com a grande quantidade de bons restaurantes aqui, sempre lotados.
    PS.: tenho 56 e só agora fiquei sabendo que vou me tornar um velhinho ultrapassado e caquético daqui a quatro anos.

  4. Hê hê… Evidentemente, caros Guenia e Luiz Carlos, a coisa do velhinho ultrapassado e caquético é uma brincadeira, uma gozação bem humorada…
    Agora, Luiz Carlos, que fiquei com inveja, ah, isso fiquei. Por você ainda estar em Maceió e também por você ter comprado um belo apartamento na Ponta Verde. Rapaz, no primeiro dia em que alugamos bicicleta e saí andando pela ciclovia ao lado do mar e das barraquinhas, pensei, de imediato: quando a Mary aposentar, vou querer passar pelo menos uns quatro meses em Maceió… Quem sabe alugo seu apê?
    Um abraço!
    Sérgio

  5. Sérgio, adorei ler sobre Maceió e o fato de que o Jatiúca continua o mesmo. Oh, e vai mudar! Que pena, que pena, que pena! A piscina pequena tão integrada entre os coqueiros é uma imagem da qual não me esqueço, de mais de 20 anos atrás… E lá vem essa cultura de consertar o que não está quebrado! Ai como isso é comum hoje em dia! Vejo aqui pra todo lado! Que privilégio, hein, pai e filha, quality time! Love it!

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *