Réquiem para um jornal que nunca existiu

O dr. Julinho (Julio de Mesquita Filho) dizia que o dinheiro não parava de entrar. O jornal fechava as portas, o dinheiro entrava por baixo das portas. Os classificados na época bombavam.

O Estadão estava rico. O dr. Julinho tinha três filhos – Julio Neto, Ruy e Carlão – e um jornal só. Não dava para todos. Primogênito era só um, Júlio Neto, e a coroa da família real é dos primogênitos.

Por isso, em 1964 ele resolveu investir um caminhão de dinheiro num jornal novo para acomodar o filho que não era primogênito mas tinha sangue de jornalista. Ruy Mesquita ganhou seu jornal. Para Carlão, bastou uma rádio, com muita música clássica, transmissão de corrida de cavalos e locutores com voz elegante e dicção sofisticada. Pianos ao cair da tarde.

Depois de uma campanha publicitária espetaculosa, que repetia imagens de um elefante trazendo a inscrição “às três da tarde” nas costas, o Jornal da Tarde foi lançado. Saía no mais improvável dos horários e no final da tarde sequer tinha sido distribuído pela cidade toda.

Um ruidoso fracasso de distribuição. Foi preciso ir recuando o horário de fechamento aos poucos para que a cidade fosse percebendo a existência do jornal.

O jornal era turbulento. A antítese de seu irmão mais velho, o modorrento, sisudo e pedregoso Estadão. O velho era chato, mas cada uma de suas pedras era um tijolo institucional. Um monumento, com a gravidade que costumam ter os monumentos.

O Jornal da Tarde tinha uma redação de piradinhos. Era comandada por Mino Carta, o jornalista que se orgulhava de ter criado e dirigido uma revista sobre automóveis – a Quatro Rodas – sem jamais ter dirigido um, e Murilo Felisberto, um mineiro melífluo e ferozmente inteligente, que se divertia em dançar minuetos de bondades e maldades com aquela redação repleta de candidatos a gênios.

Eram todos Hemingways em gestação, Godards ainda incompletos, Glaubers em preparação. Procurando bem, atrás daquelas velhas colunas e das velhas mesas de aço, seria possível achar algum Proust escondido, que ganhava honestamente seu dinheiro falando mal do trânsito do coronel Fontenelle, mas preparava em segredo a obra-prima que iria abalar a literatura mundial e nos dar o primeiro Nobel.

Lá naquele tumulto você podia achar Rogério Sganzerla, Fernando Morais, Maurice Capovilla, Sábato Magaldi, Fernando Portella, Leo Gilson Ribeiro, J. Jota de Moraes, Maurício Kubrusly, Olney Kruse e seu aparato kitsch, Eric Nepomuceno, que ainda não tinha descoberto a América, o Luiz Eduardo da Rocha Merlino, o foca inteligente de nariz empinado que a ditadura eliminaria depois de bárbaras torturas, Ewaldo Dantas Ferreira ensinando um pouco da vida aos focas. Um viveiro fantástico dos mais curiosos e vivazes exemplares da espécie humana.

Onde mais seria possível ler uma cobertura de um Palmeiras x Corinthians assinada pelo crítico de teatro Sábato Magaldi e ilustrada por Clóvis Graciano? Onde mais seria possível ler um texto de Cláudio Bojunga procurando a torcida corinthiana desparecida na cidade no dia em que ganhou um título depois de 24 anos?

Eu mesmo, um foca metido, fui enviado a Itapetininga, cidade do interior de São Paulo, para fazer uma reportagem sobre o aniversário da cidade. O jornal não se prestava muito à cobertura dessas tediosas efemérides, mas como era preciso puxar o saco de um representante comercial do Estadão na região, lá fui eu desperdiçar uma preciosa tarde de sábado.

Escrevi nada mais do que a verdade que me contaram – a cidade foi fundada por uma mula que empacou num determinado lugar. As pessoas não conseguiram tirar a mula do lugar e acabaram instalando-se em volta dela. Nos dias seguintes, a ira de Deus, da prefeitura, da Câmara, do Lions, do Rotary e das chamadas forças vivas de Itapetininga desabou sobre a minha cabeça.

Vieram delegações da cidade pedindo expressamente o meu escalpo para ser exposto na praça pública de Itapetininga, mas Mino Carta resistiu bravamente à selvagem investida e poupou minha vida e meu emprego.

O Jornal da Tarde e suas histórias merecem uns cem livros e pelo menos um ou dois deverá ser escrito.

Alguém haverá de lembrar do inusitado uma sucursal carioca rigorosamente dividida entre lacerdistas e comunistas decidindo a hegemonia do noticiário. Uma redação que era uma Guerra Civil Espanhola instalada na Rua da Quitanda.

Será preciso lembrar das aventuras e dos textos new journalism de Marcos Faerman, o gaúcho revolucionário que trocaria de bom grado sua república socialista por uma faixa de campeão do Grêmio de Porto Alegre.

Irá lembrar também das coberturas históricas como a do primeiro transplante de coração do Brasil, ou da tragédia de Caraguatatuba, ou da capa do menino chorando depois do desastre de Sarriá.

Alguém irá perguntar como é que um jornal revolucionário como esse, que marcou época na imprensa brasileira, foi para o espaço.

Não há muita ciência na resposta: foi para o espaço porque na verdade o jornal que foi tanta coisa nunca foi nada dentro da empresa que o gerou. Era apenas expressão de um conflito familiar entre aqueles que o criaram e geriram e aqueles que sempre o trataram como o mais incômodo dos trastes.

Entre os Mesquitas que o criaram e aqueles que ajudaram a matá-lo aos poucos, impondo-lhe uma lenta agonia, existe a maldição das empresas familiares onde todos os parentes se amam até a morte.

Este artigo foi originalmente publicado no Observatório da Imprensa, em 31/10/2012.

 

2 Comentários para “Réquiem para um jornal que nunca existiu”

  1. O texto despedida é simplesmente genial. São Paulo vem colecionado perdas.

  2. Eletrizante e emocionante, Sandro Vaia. Minha memória mexeu no capítulo do João Boiadeiro e aquele primeiro transplante de coração feito pelo Doutor Euriclides de Jesus Zerbini. Essa de Itapetininga é ótima. Realmente, as história dos históricos do JT comporta mais capítulos.

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