Os profissionais

Dis­traio os ner­vos: será Vítor Gas­par o herói moderno? O herói antigo era Hér­cu­les. Tinha a lúdica argú­cia de um Ulis­ses. Há um século, o herói era cine­ma­to­grá­fico e vinha com a abne­ga­ção de um John Wayne. Por vezes, dis­far­çava o ide­a­lismo com o cínico desin­te­resse de um Humph­rey Bogart.

Quem é o herói con­tem­po­râ­neo? Pro­cu­rei no metro, na espla­nada do Darwin, numa expo­si­ção da Gul­ben­kian. Pro­cu­rei uma cen­te­lha, uma chispa volun­ta­ri­osa que arraste a mul­ti­dão, que dis­sipe o desa­lento dos dias. Lembram-se de Mar­tin Sheen em Apo­calypse Now? Era o anti-herói, bem sei. Mas levava na mala uma tor­tura cató­lica, a expec­ta­tiva de uma desen­can­tada reden­ção. Ora o cato­li­cismo já só é mis­si­o­ná­rio em África.

Sim, tenho de con­fes­sar que vi o herói dos nos­sos dias. Foi em Drive e con­du­zia um indo­má­vel Che­vro­let pelas ruas más de Los Ange­les. Era Ryan Gos­ling e o que ele gui­ava, com luvas e a ponta dos dedos, era a inteira soli­dão. Como não aguento com os ner­vos, pus-me outra vez a pen­sar e lembrei-me de já ter visto aquela soli­dão, tam­bém ao volante. Guiava-a Richard Gere, em Ame­ri­can Gigolo, agora pelas ruas boas de L.A.

Gos­ling e Gere são o herói con­tem­po­râ­neo. São homens de uma soli­dão cal­vi­nista e estão à venda. Gos­ling, em Drive, vende o inex­ce­dí­vel talento de con­du­tor a assal­tan­tes que pre­ci­sam de pôr cinco minu­tos de dis­tân­cia entre o local de assalto e o ponto de fuga. Gere, no Ame­ri­can Gigolo, vende uma hora de orgás­tico paraíso a mulhe­res mais velhas, guiando-lhes os cor­pos como Gos­ling guia os car­ros: com a ponta dos dedos, entre a len­ti­dão gour­met e a exci­ta­ção da velocidade.

Os heróis de Gos­ling e Gere não com­pre­en­dem, nem dei­xam de com­pre­en­der. Com­pen­sam a apa­rente bur­rice com a osmose com a vida como ela é, as coi­sas como elas são. Ambos têm um total desen­ga­ja­mento emo­ci­o­nal (Ah, não me venham agora com Vítor Gas­par!). São pro­fis­si­o­nais segu­ros da sua uti­li­dade. Ritu­a­li­zam o vazio do dia-a-dia e agem meti­cu­lo­sa­mente: Gos­ling na pre­pa­ra­ção rigo­rosa dos car­ros e tra­jec­tos; Gere na com­bi­na­ção cer­teira das cami­sas, casa­cos e gravata.

O herói con­tem­po­râ­neo é intrans­cen­dente, orça­men­tal e amo­ral. Consola-se na visão nar­cí­sica do seu com­por­ta­mento. Repa­rem, Gos­ling e Gere têm vai­dade nos cor­pos enxu­tos, no frio e metá­lico pro­fis­si­o­na­lismo. Dis­pen­sam a alma, con­ten­tes com a dis­ci­plina do corpo. Bastam-se a si pró­prios e, se ser­vem os outros, assal­tan­tes ou mulhe­res caren­tes, é para os con­ver­ter em objec­tos cli­en­te­la­res. “Este é o meu apar­ta­mento, aqui não vêm mulhe­res”, dirá Richard Gere a uma des­sas clientes.

O herói con­tem­po­râ­neo é um alei­jado emo­ci­o­nal. É-lhe indi­fe­rente o que faz desde que o faça muito bem. Cor­rige o impro­vá­vel engano com vaga­roso silên­cio. Não há porta para o seu apartamento.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia

 

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