O pesadelo de um anjo azul

Judeu de Ber­lim, a Ale­ma­nha era a sua pátria. O tea­tro, com Max Rhei­nhardt, e depois os estú­dios de cinema da UFA, eram a sua casa. Kurt Ger­ron, na Guerra e nas Artes, mere­ceu meda­lhas. Ferido na I Guerra, o que lhe atesta a bra­vura, ele que já can­tara Bre­cht no tea­tro, teve no cinema o momento de gló­ria quando foi, ao lado de Mar­lene Die­trich, o mágico e o dono do caba­ret de O Anjo Azul. E pas­sou a realizador.

Ser­vi­ram de pouco as meda­lhas quando os nazis che­ga­ram. Expulsaram-no da fábrica de sonhos da UFA, a meio do filme que diri­gia. Fugiu para a Holanda. Tal­vez umas cen­te­nas de qui­ló­me­tros fos­sem bar­reira sufi­ci­ente entre ele e o pesadelo.

Mas Ams­ter­dam era já ali e a garra ger­mâ­nica depressa o apa­nhou. Man­da­ram Ger­ron e a mulher para o campo de The­re­si­ens­tadt, na actual Repú­blica Checa. Velha for­ta­leza para sete mil sol­da­dos, amon­to­ava, nes­ses anos de ter­ror, mais de 50 mil judeus. Ali acon­te­ciam duas coi­sas: morria-se de fome, doença e da amena bru­ta­li­dade da Ges­tapo, que ins­ta­lara um cre­ma­tó­rio, ou era-se trans­fe­rido para a morte em Auschwitz.

The­re­si­ens­tadt foi um estan­darte que os nazis ergue­ram nas bar­bas dos gover­nos euro­peus, ten­tando pro­var a huma­ni­dade e até uma con­so­la­dora liber­dade artís­tica no tra­ta­mento dos pri­si­o­nei­ros. Os judeus que iam para The­re­si­ens­tadt eram cul­tos e houve, de facto, orques­tras de música clás­sica e de jazz. Mor­riam como tor­dos, mas havia con­cer­tos. Para uma ins­pec­ção da Cruz Ver­me­lha, os ale­mães iso­la­ram um per­curso, cons­truindo facha­das de cafés e lojas, quar­tos de “luxo” para dois ou três pri­si­o­nei­ros. Os ins­pec­to­res assis­ti­ram mesmo a uma ópera inter­pre­tada por cri­an­ças. A monu­men­tal mis­ti­fi­ca­ção cor­reu tão bem que o direc­tor do campo, apro­vei­tando o cená­rio, man­dou fazer um docu­men­tá­rio que exi­bisse ao mundo a obs­cena bon­dade nazi.

Ger­ron foi esco­lhido para o rea­li­zar. Acei­tou – seria pos­sí­vel não acei­tar? – e fez na apa­rên­cia um tra­ba­lho entu­si­as­mado. Fora um mágico no Anjo Azul e, agora, Ger­ron quer acre­di­tar que as ima­gens que lhe saem das mãos vão sal­var os judeus que filma. Pediu aos figu­ran­tes da gigan­tesca men­tira que ence­nava (mas essa “men­tira” do cinema e do tea­tro fora, afi­nal, o que sem­pre Ger­ron amara), que fos­sem vibran­tes e mos­tras­sem vida. Que­ria sobre­vi­ver, por certo, mas ter-se-á con­ven­cido que o poder estava na ponta da câmara de fil­mar e que cada judeu nas ima­gens era um judeu into­cá­vel. Ilu­sãp bru­tal­mente des­men­tida: no fim, deportaram-no, com a mulher, para Aus­chwitz onde foram assas­si­na­dos, no cre­ma­tó­rio, a 28 de Outu­bro de 44.

Dos 144 mil judeus de The­re­si­ens­tadt, 33 mil mor­re­ram no campo, 88 mil foram envi­a­dos para Aus­chwitz e para Tre­blinka, quase todos para a morte. Sobre­vi­ve­ram menos de 18 mil. Do docu­men­tá­rio de Ger­ron resta a bru­ta­li­dade de alguns excer­tos arrepiantes.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia. 

 

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