Na minha cidade, quase como um turista

São Paulo é uma maravilha. São Paulo me emociona.

Tenho por São Paulo admiração, respeito, embevecimento, orgulho, gratidão. Tudo em doses paulistanas – ou seja, gigantescas, quase infinitas.

“São Paulo é como o mundo todo” – e acho que ninguém nunca jamais em tempo algum conseguirá fazer uma definição mais perfeita de São Paulo do que essa, criada por Caetano Veloso, baiano de Santo Amaro da Purificação que ele, jovem demais, num dia de imensa angústia, chamou de Santo Amargo da Putrificação.

Caetano, baiano até a raiz dos cabelos que não caem nunca, só ficam brancos, e lhe dão hoje uma beleza que não tinha quando era jovem demais e veio parar em São Paulo, compôs uma das mais belas homenagens à cidade, “Sampa”, aquela maravilha. (Na foto de Guilherme Gaensly, do início do século XX, a Praça da República, bem perto de quando cruza a Ipiranga com Avenida São João.) Mas foi em outra canção, falando de diversas cidades, diferentes culturas, Tel Aviv, New York, Barcelona, que ele – já cidadão do mundo, muito, muitíssimo além de suas origens de Santo Amaro, de São Salvador, da passagem por São Paulo – fez a mais perfeita tradução da cidade em que viveu quando seu talento tão imenso quanto seu ego estava apenas despontando. “São Paulo é como o mundo todo”, ele escreveu em “Vaca Profana”.

São Paulo é como o mundo todo, em São Paulo um grande amor perdi mas ganhei alguns belos, grandes amores, e São Paulo me emociona até a raiz dos cabelos pouquíssimos, ralíssimos, que me restam.

Para me penitenciar de tanto que falei mal de São Paulo em outros textos

Neste fim de semana viajei para São Paulo, e aí pensei em escrever um texto de turista acidental que visita a cidade que é como o mundo todo. Não que tenha acontecido qualquer fato extraordinário; apenas porque me hospedei por dois dias em São Paulo.

Pensei em fazer o texto até porque, quando visitei Paris pela única vez, e quando voltei a Porto Alegre, e quando voltei a Santiago do Chile quase como se fosse a primeira vez que pisava lá, fiz elegias a essas belas cidades, e em todos esses textos falei mal, muito mal de São Paulo, a cidade que é como o mundo todo e que escolhi para viver, quando tinha parcos, ridículos 18 anos.

Cada vez mais gosto da escolha que fiz quando era um fedelho babaca.

Vivo em São Paulo há 44 anos. Há mais de três décadas brinco que, se São Paulo se proclamasse independente desta tralha chamada Brasil (e, antes que me acusem de racismo, xenofobia, lembro que a expressão foi cunhada por Chico Buarque), eu poderia requerer meu greencard, porque casei com uma paulistana da gema e com ela tive uma filha paulistana da gema – uma filha que é a gema mais preciosa que possa haver.

Neste fim de semana nos hospedamos num hotel em São Paulo, Mary e eu, e passeamos por um pedacinho da cidade que não tem mais fim, não tem mais fim, não tem mais fim, como diziam Caetano e Torquato Neto em “Mamãe, Coragem”, quase como se fôssemos turistas, e não portadores de fato e de direito de greencards, e aí me surpreendi emocionado por esta cidade extraordinária.

Na hora de fazer o check in no hotel, o rapaz da recepção perguntou meu CEP, e, quando dei, notei que ele se espantou. É bem perto daqui, disse ele. E então quis explicar: É que estão fazendo dedetização na minha casa.

Sempre passamos um ou dois dias fora ao fazer dedetização e descupinização. O acaso (tínhamos pensado em ir pro Guarujá, mas o amigo que nos receberia tinha compromisso em São Paulo exatamente naquela sexta-feira), o mero descaso, o Google e um desconto muito grande para o fim de semana acabaram nos levando para este Transamérica Flats, na Alagoas, monumentalmente de frente para o Pacaembu, o estádio, e boa parte do bairro que dá nome ao estádio.

Cheguei ao flat, no 14º andar, pouco antes das 4 da tarde da sexta – e a visão que se tem da varanda é de tirar o fôlego. Literalmente breathtaking.

Claro, não é o Rio de Janeiro. Não é San Francisco. Não é Hong Kong. São Paulo não tem mar, como essas belíssimas cidades citadas aí. Não tem a cordilheira que Santiago tem. Não tem os dois rios que abraçam aquela ilhota que os holandeses compraram dos índios por um punhadinhho pequeno de dólares e viraria o umbigo do capitalismo, dos Estados Unidos da América, do mundo. Não tem a beleza dos rios nem do magnífico casario de Paris e Londres.

Mas a visão que se tem de São Paulo quando se está num andar alto de prédio que dá para o Pacaembu é chocantemente bela.

Só a Amazônia deve ter mais verde do que se vê ali – e, do jeito que as coisas andam, em breve o Pacaembu terá mais verde que a Amazônia.

E só a visão da Praça Charles Miller – imensa, gigantesca, construída entre duas colinas – e do Estádio do Pacaembu – o mais simpático, charmoso, aconchegante campo de futebol do país – já é uma maravilha.

A praça onde vi belos comícios. O estádio onde vi tantos jogos do Corinthians, desde os tempos em que o time não conseguia ganhar do Santos de Pelé, e onde depois vi Tina Turner com Regina e enfim Paul McCartney com Mary, Suely e Fernanda, mais nossa eterna amiga Andrea.

Em uma única e rápida caminhada, paisagens, atmosferas, climas díspares

É muito estranho você estar hospedado em um hotel na cidade em que você vive. Esquisito – às vezes fascinante. De uma certa forma, você acaba vendo a cidade um tanto com os olhos de turista – mas ao mesmo tempo cada trechinho da cidade tem um pedaço da história da sua vida.

No Encontro Marcado, Fernando Sabino fez uma frase que guardei para todo o sempre, ou pelo menos até que o Alemão me pegue. Seu personagem, que era ele mesmo, e vivia então na cidade que escolhera para viver, o Rio de Janeiro que continua ainda hoje lindo apesar de toda a favelização absurda, volta a sua Belo Horizonte natal, minha Belo Horizonte desde a mais absoluta infância até os 16 anos recém-completados, e exclama: “Aqui outrora retumbaram hinos”.

Aqui outrora retumbaram hinos.

Nas ruas de uma cidade em que se viveu ao longo de 44 anos, retumbaram muitos hinos.

Alguns profundamente tristes – dirges. Da varanda do quarto do hotel, era impossível não ver o prédio do hospital em que Suely se foi.

Mas muitos outros alegres, os hinos que outrora retumbaram, como dizia Sabino.

Um passeio até o encontro marcado

Resolvi ir a pé até o Copan, onde havia um encontro marcado com amigos de muitas décadas. Poderia ter pego um táxi, mas já me sentia meio turista na minha cidade, e resolvi ir a pé. Passei pela Vilaboim de tantas memórias – tanto chope com tantos amigos, a homenagem a Gisela da Marie Claire no meio da praça. Na Pará, perto da Praça Buenos Aires, recém promovida a Parque Buenos Aires, vi um garotinho de uns sete anos, com solidéu na cabeça, perguntar pra mãe se poderia chamar a amiguinha para dormir em casa, e a mãe responder: “Mas no shabat? Não! Os pais dela não iam gostar.”

São Paulo é como o mundo todo.

Pensava em pegar a Maria Antônia – a rua das batalhas entre o povo da Filosofia da USP e os caras do CCC do Mackenzie em 1968, a rua das nossas batalhas na revista Afinal -, mas, na esquina em que se encontram a Maria Antônia, o começo da Higienópolis, a Itambé que vem de cima e ali vira Dona Veridiana, e a Major Sertório, cinco nomes de ruas em uma esquina só, como se estivéssemos em Paris, vi que a Major Sertório era a reta até o Edifício Itália. E então segui por ela, a Major Sertório que desce do augusto Higienópolis até o bas-fond em torno da Amaral Gurgel e da Rego Freitas, para sair no ponto que era e ainda continua sendo imponente, a Ipiranga do Edifício Itália, do velho Hilton, do Copan.

(Na foto de Guilherme Gaensly, do início do século XX, o bairro de Santa Cecília, em que fica a Dona Veridiana, pertinho da Major Sertório.)

Não creio que haja muitas cidades no mundo em que, durante uma caminhada de pouco mais de meia hora, seja possível percorrer paisagens, atmosferas, climas, tão díspares, quase antípodas, como em São Paulo.

Da Alagoas diante da Faap até o Copan, em menos de 40 minutos, a gente passa por uns quatro diferentes aspectos de uma mesma metrópole que é como o mundo todo. Bairro de ricos, região universitária, pedaço decadente, o Centro Novo (hoje velhíssimo) em sua bela porção.

O encontro com os velhos amigos no Bar da Dona Onça, lugar mais ou menos novo, badaladíssimo, foi especialmente agradável. Lembramos antigas histórias, comentamos recentes pavores, a situação trágica do país. Combinamos planos para o futuro próximo que sei lá se vão sair da vontade para o papel.

As ruas tomadas por hordas de gente, como em Paris, Santiago…

Do táxi de volta para o hotel na Alagoas, vi, encantado, as imensas hordas de garotos que trocam as aulas do Mackenzie por uma cerveja nos mil bares da Maria Antônia. Na rua em que esquerdistas e anticomunistas trocavam pedras e coquetéis molotov no ano que não terminou, e em que meus amigos e eu tentamos fazer uma revista inteligente e independente, e demos com os burros n’água, na época da passagem da ditadura então agonizante para a Nova República, hoje, como há tantas décadas, multidões de jovens se reúnem para beber.

Atualmente não me agrada muito a idéia de alunos matarem aulas. Aluno é pra estudar, aprender. Mas nos meus tempos de faculdades jamais concluídas, eu também troquei muita aula chata por chope, e, como disse sabiamente o Bruce Springsteen, a gente aprendia muito mais com as canções de três minutos do que em todos os anos de escola.

E o próprio motorista do táxi era uma figura, paulistaníssimo e jovem, ouvindo remix de canções de quando ainda não era nascido, os anos 70, misturadas ao chacadum dos anos 80 que permanece firme até hoje. Ouvia de um pen-drive ligado ao rádio do carro, e contava que um de seus prazeres é fazer download de remixes, e que anda tentando ele mesmo criar alguns.

Bem mais tarde, depois que Mary escreveu o artigo dela de toda sexta-feira no laptop levado para o hotel, saímos para comer na Vilaboim, e a Vilaboim regurgitava de gente – centenas, milhares de pessoas, na sexta-feira quase virando sábado. Nas calçadas dos bares mais perto da Faap não cabia mais uma única garota com as coxas de fora. Meu Deus do céu e também da terra, quanta bela coxa de fora!

E então não pude deixar de pensar que nos meus textos de turista acidental sempre elogiei as cidades em que há multidões ao ar livre, e sempre me queixei de que São Paulo não tem lugares onde as pessoas se encontram na rua.

Quando a gente anda na nossa cidade como morador dela, a gente tem a tendência em ver os defeitos – sem reconhecer as qualidades.

Depois de 44 anos em São Paulo, meus pezinhos pisaram no Clube Nacional

No meio da belíssima paisagem que se vê do 14º andar do prédio do hotel na Alagoas, debruçado sobre a Praça Charles Miller e o Estádio do Pacaembu, impressiona, chama a atenção uma construção grande – baixa, de uns dois andares, já que ali não se podem construir prédios, mas muito ampla (na foto abaixo). Mary queria chegar até lá no sábado. Chegar a um determinado lugar ali não é nada fácil. Os caras da City of São Paulo Improvements, que construíram nas primeiras décadas do século XX as ruas do Pacaembu (e também as dos Jardins, do Alto da Lapa, do Alto de Pinheiros, ou seja, quase todos os bairros mais nobres de São Paulo), tinham essa idéia de fazer ruas curvas, sinuosas, nada diretas, nada claras – o melhor meio de afastar o trânsito, o tráfego; o melhor meio de fazer quem não conhece o labirinto se perder, e portanto não tentar voltar lá; o melhor meio de deixar aquelas ruas só para o tráfego dos próprios moradores.

Apanhamos bastante para encontrar a tal edificação grandiosa, na verdade um conjunto de edificações. Por mim, teria desistido de tentar, mas Mary é do tipo que não desiste nunca, e então fomos parar diante da entrada da imensa propriedade que já foi escola, já foi convento, já foi até sede da antiga Febem, encravada em um dos lugares mais nobres, caros de São Paulo, na Rua Angatuba. Não dava para visitar, mas conversamos com um guarda, que falou um pouco da história do conjunto de prédios, da propriedade, que inclui um grande bosque e, segundo ele, visto de cima, tem o formato de uma cruz. Hoje não há qualquer uso daquele colosso. Há apenas guardas e manutenção para que tudo não desabe. Foi tombado, pertence à Faculdade de Medicina da USP.

Se o Brasil fosse civilizado, o poder público entregaria a uma grande rede hoteleira o imóvel gigantesco, mediante convênio que faria bem para todas as partes. Mas o Brasil – mesmo São Paulo, sua parte mais rica e desenvolvida – é o cu do mundo, e então ninguém ganha nada, e o belo prédio, um dos maiores do Pacaembu, está lá completamente sem uso.

Bem pertinho dele, ao lado dele, está o Clube Nacional.

Sempre ouvi falar do Nacional Clube. O Clube Nacional é assim um pedaço da Londres dos anos 1890 encravado numa das regiões mais nobres de São Paulo. O doutor Ruy Mesquita, meu patrão desde 1970, dois anos após eu chegar a São Paulo, é, ou pelo menos era, sócio dele. Aliás, ele mora, ou pelo menos morava, naquela mesma Rua Angatuba.

Cheguei a São Paulo, pobre de marré deci, com uma mão na frente e outra atrás, no início de 1968. Em cinco anos, meros cinco anos, de muito trabalho (e bastante sorte), de pobre de marré deci passei a assalariado que podia alugar apartamento decente (e aqui vai parte do motivo da gratidão à cidade que me acolheu e me deu oportunidades). Desde 1973 moro na Zona Oeste da cidade, em bons bairros, muito próximos à Rua Angatuba. Mas, em 44 anos de São Paulo, a imensa maior parte deles morando bem perto do Pacaembu, jamais tinha passado naquele trecho da Angatuba, onde um gigantesco casario hoje abandonado fica ao lado do Nacional Clube.

Precisou uma dedetização, precisou ficarmos hospedados como turistas na Rua Alagoas, para que eu entrasse pela primeira vez no Nacional Clube.

Meus pezinhos pouquíssimo viajantes (ao contrário dos da Mary) já pisaram em Manhattan, em Los Angeles, em San Francisco, em Honolulu, em Montreal, em Ottawa, em Toronto, em Londres, em Cambridge, em Paris, para não falar das vizinhas Montevidéu, Buenos Aires e Santiago, mas jamais haviam pisado no Clube Nacional, que fica a uns dois quilômetros das Perdizes, o bairro em que vivo há 35 anos.

Oásis sem miséria neste país miserável

E aí não dá para deixar de pensar em Império do Sol de Spielberg e no que Inês nos dizia.

Quando era bem criança, e só andava – como fazem todos os meninos da classe média – pelos bons bairros de São Paulo, Inês perguntava à mãe dela e a mim por que a gente falava tanto que o Brasil era um país miserável. Nos assustávamos, Regina e eu, com aquilo: como era possível que Inês achasse que vivíamos numa beleza de país? Mas a Inês de sete, oito anos, estava certa. A Inês de sete, oito anos, sempre esteve mais certa que Regina e eu, em tudo – ou, no mínimo, em muitas coisas, algumas delas as mais fundamentais.

(Na foto de Guilherme Gaensly, do começo do século XX, a Avenida Tiradentes.)

Qualquer criança ou adolescente que viva nos bairros bons de São Paulo e só trafegue por eles tem dificuldade de imaginar o tamanho da miséria e da desigualdade do Brasil.

Quando Fernanda conheceu Carlos, os dois aí com 17, 18 anos, andar de ônibus, para ele, era uma experiência ainda nova. Ela, ao contrário, sabia andar sozinha de ônibus desde, sei lá, uns 11 anos. Diferença de status social é isso aí. (Corrigi aqui uma afirmação errada que havia feito – de que o Carlos jamais havia andado de ônibus – quando Fernanda me apontou o equívoco em comentário aí abaixo.)

Inês, Carlos e também Fernanda, é claro, eram um pouco como o garoto inglês James Graham, em Império do Sol. Filho de ricos, vivia no elegante, belo, confortável bairro de ricos na Xangai dos anos 30. Nunca tinha visto miséria na vida. Tadinho: a miséria profunda em que mergulharia em seguida, Inês, Carlos e Fernanda jamais conheceram, graças aos bons deuses.

Ainda há loja de disco – e das boas. E locadora de filmes – e das boas

Há lugares em São Paulo – como de resto no mundo todo – em que há tanta exibição de riqueza, tanta ostentação, que neles não consigo me sentir bem. Me incomoda, por exemplo, a ostentação do Iguatemi, embora goste dele porque Vivina me levou lá algumas vezes, quando estávamos todos recém-chegados. Mas Higienópolis, embora seja um dos bairros mais nobres da cidade, não chega a ser um desses lugares opressivos. Tem todos aqueles prédios belíssimos, maravilhosos, de apartamentos gigantescos, onde cabem dois, ou três, até quatro do meu; mas não há ostentação opressiva.

Sentimos isso mais uma vez caminhando pelas ruas de Higienópolis no sábado à tarde, dando voltas nos morros dentro da Praça, perdão Parque Buenos Aires – e percebi que nunca antes tinha prestado muita atenção às diversas belas estátuas que estão ali. Embora mais fino, mais elegante (ou talvez por isso mesmo), Higienópolis tem muito menos ostentação do que, por exemplo, o Morumbi, ou o Shopping Iguatemi. (No Cidade Jardim, mais ostensivo ainda na ostentação, nunca pisei, e tenho certeza de que jamais vou pisar.)

No final do passeio pelo bairro, já no início do noite, quis entrar na Musical Box. Sim: a Vilaboim ainda há uma loja de discos, e ela é excelente, com acervo precioso, assim como ainda há, no outro extremo, uma ótima locadora de filmes. Na loja, depois de cinco minutos de conversa, era como se fôssemos amigos de infância de Alain, o dono (ou seria o gerente? Não, acho que é o dono), fã de Dylan, Leonard Cohen e Paul McCartney, os três de quem comprei ali os discos mais recentes. Alain, barbinha começando a grisalhar, sujeito aí de uns 50 anos, que viu os shows do Dylan em São Paulo mas ainda não comprou para os de abril agora, falou muito com Mary sobre e Renaissance, uma banda que, como diziam no Marvada Carne, me passou.

Bem em frente à Musical Box, há uma livraria estupenda, a Hai Kai. Estupenda, mas perigosa: tem uma imensa quantidade de livros de arte, de fotografia, esses livrões que dão vontade de comprar todos. Me fascinou especialmente Guilherme Gaensly, de que nunca tinha ouvido falar (do livro; o fotógrafo, claro que já conhecia). Guilherme Gaensly é uma fina edição da Cosac Naify com apoio dos incentivos fiscais, de 2011, tiragem de apenas 5 mil exemplares, 200 e poucas páginas com textos de historiadores e pesquisadores e centenas de fotos feitas por Wilhem Gaensly, suíço de Wellhausen, que chegou ao Brasil em 1848 e se tornou um dos mais importantes fotógrafos da São Paulo das últimas décadas do século XIX e primeiros anos do século XX.

Mary me deu o livro de presente.

E, pouco depois, sentados lado a lado na poltrona da sala do quarto do hotel, olhamos embevecidos todas as fotos e lemos muitas das legendas das 200 e poucas páginas do livro.

(A foto acima, da Estação da Luz no início do século XX, está na capa do livro Guilherme Gaensly. As fotos antigas deste post estão todas no livro. As fotos em cores, chinfrinzinhas, são minhas.)

Dá um pouco de raiva – na verdade, muita raiva – ver como foram poucas as edificações de 100, 110 anos atrás que São Paulo não destruiu, no avassalador processo de transformação de cidadezinha acanhada para a maior metrópole da América Latina. Mas, diabos, foi o que foi; leite derramado, passado arrasado. Não me lembro de metrópole das Américas que tenha preservado seu casario secular, como Paris fez.

E o sábado, como manda a boa tradição paulistana, acabou em pizza.

Em parte, porque tínhamos ido no meio da tarde ao The Fifties, lugar ótimo e, claro, carésimo, e comido imensos cheeseburgers. Em parte, porque à noite salivei pensando na pizza – fininha, finíssima – do Vica Pota, ali pertinho, junto do Parque Buenos Aires.

Há mais de 4 mil pizzarias em São Paulo. Cada um tem suas preferidas, é claro. O Vica Pota é uma das minhas.

E aí, de volta ao hotel, enquanto Mary lia, resolvi experimentar se conseguiria fazer um texto de turista acidental sobre o fim de semana de viagem a São Paulo. Já havia tentado, antes, e por mais de uma vez, fazer um texto de elogio a São Paulo, mas não gostei de nenhuma das tentativas.

O texto começou a sair com facilidade.

Mais tarde, depois que, ao meio-dia de domingo, saímos do hotel e voltamos para casa nas Perdizes, reli o que havia começado a escrever. Estava bastante hiperbólico, rebarbativo demais, mas não me pareceu horroroso. Tirei alguns exageros e fui em frente.

Aí está.

Então, para acabar:

Em suma, é assim: São Paulo destruiu boa parte de sua história. Não tem a beleza do Rio, do Recife, de Porto Alegre – para não falar de Paris, San Francisco, Londres, Roma. E no entanto é linda, emocionante. Me acolheu, e acolheu bem. Me deu um monte de coisas boas. Foi aqui que tive a filha por quem babo. Uma carreira da qual não desgosto. É a minha cidade. Tem um monte de defeitos, e eu posso falar deles, porque é a minha cidade – mas se algum carioca, cuiabano, belo-horizontino ou o que for vier falar de defeitos daqui, fico fulo, brigo.

E tem, sim – ao contrário do que esbravejei ao escrever sobre outras cidades que visitei –, muitos lugares onde as pessoas se reúnem e conversam e riem e se divertem. São Paulo é como o mundo todo, e não tem mais fim. Tenho certeza plena: não saio daqui.

24 a 27 de março de 2012

 

9 Comentários para “Na minha cidade, quase como um turista”

  1. Amei!
    Só uma correção, por justiça: Não é verdade que quando conheci o Carlos ele nunca tivesse andado de ônibus.
    Ele andava. No ano dele de cursinho, no Anglo da Sergipe, ele pega o trólebus na augusta, todos os dias. O que eu achava, e acho que deve vir daí essa sua memória, é que para ele isso não era uma coisa tão normal e corriqueira como para você, para minha mãe e para mim, desde criança.
    O texto é bárbaro. Faz a gente pensar que tem que tirar férias na nossa cidade, porque quando é que a gente tem tempo, nessa vida besta, de andar à toa nesta São Paulo?

  2. Lindo texto, Servaz. Hoje mesmo, durante uma caminhada por Highgate, aqui na zona Norte de Londres, uma amiga de Paris perguntou a mim e a uma paulistaninha de Itaquera se São Paulo era bonita. Pergunta simples, resposta complexa principalmente considerando que vinha de alguém que nasceu em Paris e agora está em Londres. Minha resposta foi: não é Paris, não é Londres, não é o Rio, mas é uma metrópole, a cidade mais importante do meu País e tem sim vários lugares bonitos. Achei que tinha mandado bem e sido justa, mas agora, lendo seu texto, sinto remorsos de resposta tão simplista. Beijo

  3. Rejane, sua mensagem é linda, emocionante. Só não posso concordar com sua última frase. Sua resposta não foi, de forma alguma, simplista. Foi perfeita. Você disse, com a síntese que não consigo fazer, o ponto mais importante, o tal do cerne, do fulcro da questão. Muitíssimo obrigado.
    Sérgio

  4. E, Fê, peço de público perdão pelo erro. Seria bom se a vida fosse fosse como a internet: se a gente pudesse, na vida,corrigir os erros tão rapidamente quanto se pode corrigir na internet…
    Obrigado por tudo. Obrigado por existir.
    Paiê

  5. Sé, adorei! Eu sou há muitos anos turista em São Paulo, o que me deixa um pouquinho triste… mas também me reconciliou com a cidade da qual eu sempre queria ir embora, pela falta que me fazia o mar, pelo aperto que eu sentia entre os milhões de prédios altos. Agora, a nostalgia típica (acho) de quem vive longe do seu país me criou um carinho imenso por São Paulo. Quando eu for ao Brasil em agosto/setembro, conto com você como guia e companhia para passeios muito agradáveis! Beijo enorme, Inês

  6. No artigo de Sérgio Vaz, uma coisa que a gente constata sempre a respeito de Caetano Velozo… “Caetano, baiano até a raiz dos cabelos que não caem nunca, só ficam brancos, e lhe dão hoje uma beleza que não tinha quando era jovem…”
    É verdade, Caetano está mais bonito do que quando jovem.

  7. Sérgio,
    Lindíssimo e emocionante seu texto.
    São Paulo é linda, com gente linda, lugares especiais e amigos únicos: você, Mary e Fê.
    Adorei começar minha sexta-feira lendo o seu amor por Sampa, e o “eterna”.
    Amor eterno, para os três,
    Andréa

  8. Sérgio:
    Belíssimo texto! Maravilhosa visão dessa cidade, que tenho sempre o prazer de conhecer com você e Marynha quando vou aí.
    Agora, vai escrever bem assim lá na Conchinchina! Ai, como fico orgulhosa!Seu texto parece um conto. Já pensou num livro?
    Beijos
    Lúcia

  9. Dona Lúcia, queridíssima,
    Se a senhora fosse uma sogra qualquer, eu diria que elogio de sogra não vale.
    Como a senhora é quem é, seu elogio me deixa feliz demais – e até meio sem jeito…
    Um grande abraço, e obrigado.
    Sérgio

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *