Dylan soberbo, para uma platéia que merecia Dylan

As 17 canções que Bob Dylan escolheu para apresentar na turnê que passou pelo Brasil neste mês de abril de 2012 foram lançadas em um espaço de 46 anos. A mais antiga é de 1963, e as mais recentes, de 2009.

Carreira gloriosa é isso aí.

Não dá para dizer com certeza, é claro, mas, pelo que vimos, Mary e eu, bem mais da metade da platéia que encheu o monstruoso Credicard Hall na segunda noite, a de domingo, 22, não tinha nascido sequer em 1974, o ano do disco Blood on the Tracks, de onde Dylan pinçou duas canções para apresentar aqui, “Tangled up in blue” e “Simple twist of fate”.

Tinha gente de todas as faixas etárias, é claro, como não poderia deixar de ser, como foi, por exemplo, nos shows de Paul McCartney em 2010 e de Eric Clapton no Morumbi em 2011. Mas me impressionou profundamente a quantidade de jovens – meninas e meninos na faixa dos 20 a 30 anos. Nos sentamos cercados de garotos por todos os lados.

Até porque, vamos e venhamos, Dylan é muito menos “popular” no Brasil do que Paul, e mesmo do que Clapton. Sua música é muitíssimo mais cerebral, menos dançante, menos quente que a dos dois mestres ingleses que lotaram o Morumbi.

E o impressionante, mas muito, muito impressionante, foi que a platéia parecia composta por fanáticos por Dylan, por conhecedores de sua obra.

Era a platéia ideal, diria, com toda certeza, qualquer artista: respeitosa, atenta, silenciosa quando necessário, barulhentérrima quando possível. Os aplausos e urros eram intensos – e às vezes não apenas ao final de cada canção, mas mesmo no meio de algumas delas.

A primeira vez que o homem tocou sua harmônica, por exemplo, o lugar quase veio abaixo.

O Brasil é um lugar muito estranho, muito louco mesmo, como bem pôde perceber James Taylor no Rock in Rio, em 1985. O doçamargo Babe James não andava muito bem, naquela época, com problemas com drogas e uma carreira um tanto estacionada. De repente, neste distante país tropical de língua bárbara, que não tem nada a ver com o inglês, ouviu uma multidão de centenas de milhares de pessoas cantando junto com ele suas pérolas do início dos anos 60. “And my heart came back alive”, escreveria ele em “Only a dream in Rio”, do disco que lançou em seguida.

O fato é que a platéia do Credicard Hall, em Santo Amaro, aquela estranha cidade ao Sul de São Paulo, parecia ser de San Francisco, ou Boston.

Parecia que todo mundo – ou pelo menos a imensa maioria – conhecia a obra do compositor, sabia o que estava sendo cantado.

Foi muito, muito impressionante.

“Dylan é um atroz assassino de canções”

Se a platéia era a ideal, o artista estava soberbo.

E vou logo dizendo: não acho que Bob Dylan seja um artista bom para se ver em show. Acho o Dylan de estúdio melhor que o Dylan ao vivo. No estúdio, acho que ele capricha mais. Soa mais limpo, mais límpido.

Claro: Dylan não é uma perfeição de cantor. Seu timbre de voz não é educado, sequer é belo, dentro dos padrões tradicionais. Está muito longe, é óbvio, de um Bing Crosby, um Frank Sinatra, um Nat King Cole. Agora, já velho, tem a voz que mostra a idade.

Por uma grande coincidência, no mesmo domingo do show, horas antes de empreender a longa viagem até Santo Amaro, li um comentário no blog português Escrever é Triste, onde escreve o Manuel S. Ferreira, que é arrasador. Diogo Leote faz ali duas afirmações. A primeira: Dylan “é o mais brilhante escritor de canções de sempre”. A segunda: Dylan “é um atroz assassino de canções. Das suas próprias e brilhantes canções”.

E ele prossegue, esse Diogo Leote: “Bob Dylan devia ser impedido de usar a sua horrorosa voz para cantar e, assim, destruir dezenas e dezenas de obras-primas. Pela parte que me toca, não conheça uma versão de uma música de Bob Dylan que não seja melhor do que o original”.

Na minha opinião, o Dylan cantor é melhor no estúdio que ao vivo

Naturalmente, essas afirmações parecem mais uma coisa de épateur les bourgeois do que dito com grande seriedade.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.

Na minha opinião, o Dylan cantor não chega à maravilha que são, por exemplo, Caetano Veloso e Paul Simon, compositores que foram dotados pelo Criador (ou pela natureza, sei lá) de vozes gostosas, belas, elásticas, suaves, elegantes. Mas é um cantor tão bom quanto outros cantautores, singers-songwriters, como Chico Buarque, José Afonso, Paolo Conte, Georges Moustaki, Jacques Brel, Victor Jara, para citar só gente do primeiríssimo time. (A foto é de Eduardo Nicolau/AE).

Mas é melhor cantor no estúdio que no palco.

No palco, tende, há muito tempo, em especial a partir da segunda metade da década de 70, quando começou a sua Never Ending Tour, de anos a fio, a desconstruir suas canções, a transcriá-las, a reinventá-las, a apresentá-las em arranjos, andamentos, completamente diferente da gravação original. Transformando-as – para sintetizar – em irreconhecíveis.

Escreveu-se, com ironia, sobre a turnê que Dylan iniciou nos últimos anos da década de 70 e que parecia não terminar nunca, daí o apelido que ganhou, que ele precisava fazer tantos shows, em todos os continentes, para pagar a cara pensão alimentícia de Sara e da penca de filhos que teve com ela.

Mas o fato é que parecia – dá para ver pelas diversas gravações ao vivo que saíram em disco – que Dylan estava mais cumprindo uma obrigação do que tendo prazer em fazer tantos shows.

Parecia que ele transcriava suas maravilhosas canções porque estava cansado delas, e cansado de ter que se apresentar no palco para ganhar a vida. Mordia as palavras, mastigava as palavras e as jogava para o público como se estivesse querendo maltratar as pessoas que tinham pagado para vê-lo. Parecia que ele tinha raiva – das canções e do público.

Foi exatamente esta a sensação que tive quando vi Dylan no antigo Palace, na primeira metade dos anos 90.

Não guardei boa lembrança daquela experiência. Muito ao contrário. E não tive interesse em vê-lo quando se apresentou no Morumbi, se não me engano num daqueles Hollywood Rock.

Elói Gertel e Vera Dantas viram um show dele em Paris, numa turnê de 2007, depois do lançamento do disco Modern Times. Elói falou muito bem do show: tinham ficado encantados com o profissionalismo do cantor, com a excelência da banda. (E até ganhei de presente a revista-programa, de edição limitada, lançada para aquela turnê – mais uma das muitas coisas, da minha coleção de memorabilia de Dylan.)

Cheguei até a pensar em não ir ao show do Credicard Hall. Já com os ingressos comprados, ainda tive dúvidas. Quase desisti na última hora.

Jamais me perdoaria, se tivesse deixado de ir.

Uma banda integradíssima, um Dylan profissionalíssimo, até mesmo jovial

Profissionalíssimo. A definição que o Elói tinha dado é exata. O show é todo feito com o mais profundo profissionalismo.

A banda – baixo, duas guitarras, bateria, trompete – está afinadíssima. Percebe-se perfeitamente que todas as canções foram exaustivamente ensaiadas. Tudo funciona como um relógio suíço da mais alta qualidade.

(Eis os nomes dos excelentes, experientes músicos que acompanham Dylan na turnê: Tony Garnier, baixo; Charlie Sexton e Stu Kimball, guitarras; George Recelli, bateria; e Donny Heron, violino, mandolim, trompete e pedal steel.)

Está roqueiro, abertamente roqueiro, com som alto e forte – e, felizmente, a acústica do Credicard Hall é ótima. Ouve-se com perfeição cada instrumento, nada tampa, obscurece, abafa nada.

E Dylan, aos 71 anos (completa 72 em maio agora, no dia 24), parece mais em forma que quando o vi no Palace, mais de 15 anos atrás.

E não parece estar cansado, querendo despejar as canções o quanto antes, doidinho pelo momento de terminar o show. Muito ao contrário. Chega até mesmo a estar jovial; parecia estar percebendo que tinha diante dela uma platéia fiel e embevecida.

Claro: não diz nem boa noite nem obrigado. As únicas palavras que pronuncia – além daquelas das canções – são para apresentar os nomes dos músicos. Não é o estilo dele conversar com a platéia. Não é Paul McCartney: é Bob Dylan.

Mas chega até mesmo a gingar o corpo, as pernas, em alguns momentos. Parece estar gostando de estar no palco.

E se alterna entre a guitarra elétrica, a harmônica e o órgão elétrico – com um profissionalismo, uma segurança, um domínio absoluto do que está fazendo.

A voz está velha, sim, é claro. Mas Dylan não está comendo e roendo as palavras como já o ouvimos fazer tantas vezes em discos gravados ao vivo. Pronuncia as palavras com clareza, como fazia nos primeiros discos, na fase folk, anterior ao rock, e também como fez depois do acidente de moto de 1968, de John Wesley Harding até a fase maravilhosa de Blood on the Tracks e Desire.

Canções dos anos 60, 70, 90 e 2000

Eis a set-list do show:

  Música Disco Ano
 1 Leopard-Skin Pill-Box Hat Blonde on Blonde 1966
 2 It ain’t me, babe Another Side of Bob Dylan 1964
 3 Times have changed Trilha sonora do filme Wonder Boys 2000
 4 Tangled up in blue Blood on the Tracks 1974
 5 Beyond here lies nothin’ Together through life 2009
 6 Not dark yet Time out of mind 1997
 7 Summer days Love and theft 2001
 8 Simple twist of fate Blood on the Tracks 1974
 9 High Water (for Charley Patton) Love and theft 2001
10 Trying to get to heaven Time out of mind 1997
11 Highway 61 Revisited Highway 61 Revisited 1965
12 Forgetful heart Together through life 2009
13 Thunder on the mountain Modern Times 2006
14 Ballad of a thin man Highway 61 Revisited 1965
15 Like a rolling stone Highway 61 Revisited 1965
16 All along the watchtower John Wesley Harding 1967
17 Blowin’ in the wind The Freewheelin’ Bob Dylan 1963

Fiz as contas. São 7 canções dos anos 60, 2 dos anos 70, 2 dos anos 90 e 6 dos anos 2000.

Só a década de 80 ficou de fora.

Não tenho uma contabilidade recente de quantas canções Dylan já compôs, mas acredito que devam beirar aí umas 500. Pelo menos umas 200 são magníficas. Daria para o cara fazer uma dúzia de set-lists de 17 canções sem repetir nenhuma.

Assim, é absolutamente natural que uma ou outra preferida do público fique de fora. No táxi de volta de Santo Amaro para São Paulo, em que se fez um esquema de lotação (em uma única corrida Santo Amaro-São Paulo, o motorista amealhou R$ 280,00), duas moças muito jovens, belas e descoladas, que não se conheciam, comentaram que gostariam de ter ouvido “Hurricane”. Natural. Eu, por mim, gostaria de ter ouvido outras 17 das minhas preferidas – se possível com um som mais acústico, menos roqueiro.

Mas não dá para reclamar. Foi uma beleza de show, uma maravilha.

O entusiasmo da platéia – que era grande desde o início do show, precisamente às 8h0h5 – pareceu subir algumas oitavas na apresentação de “Ballad of a thin man”, a que diz que alguma coisa está acontecendo, mas você não sabe o que é – sabe, Mr. Jones? E literalmente explodiu quando a banda atacou com som e fúria “Like a Rolling Stone”. A canção seguinte, “All Along the Watchtower”, veio como a catarse final, com um show de guitarras que deixaria feliz Jimi Hendrix, autor de uma das versões mais conhecidas da canção.

No bis, a melodia de “Blowin’ in the wind” estava praticamente irreconhecível. Mas os versos poderosos, criados em 1963, quando uns 70% daquela platéia de umas 4 mil pessoas ainda não tinham nascido, continuam tão belos hoje quanto na época da luta pelos direitos civis.

Uma hora e 40 minutos de um show emocionante, impressionante.

É preciso ouvir mais e melhor os discos mais recentes

Agora, uma confissão: o Dylan-maníaco aqui está fora de forma.

Não tinha lido sobre os shows anteriores (ele fez Rio de Janeiro dia 15, depois Brasília e Belo Horizonte), nem visto a set-list. Assim, resolvi anotar as músicas durante o show, numa cadernetinha. Simplesmente não reconheci a quinta música. Nem a sétima, nem a nona, nem a 12ª, nem a 13ª.

Em casa, comecei a montar a set-list no Word. Em 17, não reconheci cinco! Um absurdo total, uma vergonha!

São, essas cinco, canções dos discos mais recentes, Love and Theft, Modern Times e Together Through Life.

Preciso ouvi-los mais, e melhor.

Comentei com Mary que estou absolutamente fora de forma. O Dylan está em ótima forma, eu não.

E tive que ouvir o seguinte: “Ainda bem que não é o contrário”.

A turnê prossegue por Porto Alegre, no dia 24, terça. Fará em seguida quatro shows em Buenos Aires, um em Santiago, um na Costa Rica, três no México. Em junho faz uma apresentação na Inglaterra, e depois tem Alemanha, Áustria, Suíça, Espanha, França, Itália e França de novo.

O sujeito não pára.

22 e 23 de abril de 2012

 

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