Começa sem mim

Nenhuma janela é indis­creta. Há jane­las em todos os fil­mes de Hit­ch­cock, mas foi na janela das tra­sei­ras que ele fil­mou a sua melhor obra. A janela das tra­sei­ras dá para as tra­sei­ras do mundo e é pelas tra­sei­ras que o mundo se deixa filmar.

Há sem­pre ide­a­lis­tas e bem inten­ci­o­na­dos. Docu­men­ta­ris­tas como Flaherty ou Ivens acre­di­ta­ram que fil­mar o mundo era fil­mar a Natu­reza ou, ainda mais ide­al­mente, a esplên­dida obra de Deus, mon­ta­nhas ou vento e um homem em estado de bom sel­va­gem. Mas Deus ou a Natu­reza são dra­ma­tur­gos per­ver­sos, mais cíni­cos do que Billy Wil­der e com a mesma irre­ver­sí­vel mal­dade que, a meio do rio, o sapo des­co­briu no escor­pião. Já não have­ria cinema se o cinema tivesse per­sis­tido naquela árida desi­lu­são calvinista.

Hit­ch­cock, cine­asta cató­lico, como todo o bom cató­lico des­con­fi­ava de Deus e detes­tava a Natu­reza. É, por isso, que a obra-prima das suas obras-primas, Rear Win­dow, foi fil­mada em estú­dio. O como­dista mes­tre inglês man­dou cons­truir na Para­mount um pátio inte­rior de 56 metros de com­prido, 11 de largo e mais 12 metros de altura. Mani­pu­lou, à fic­tí­cia medida do cinema, o que, se fosse real, seria esfor­çada obra do homem e, por­ven­tura, insí­pida obra de Deus.

Quem viu e mesmo quem não viu Rear Win­dow, sabe que o filme é a his­tó­ria de um homem quase tão imo­bi­li­zado como o Por­tu­gal dos nos­sos dias. James Stewart é fotó­grafo pro­fis­si­o­nal, con­fi­nado a casa por causa de uma perna em gesso. Da sua janela vê as jane­las dos pré­dios do outro lado do saguão. É das tra­sei­ras que, por exem­plo, vê o tra­seiro da bai­la­rina a que, agra­da­vel­mente impres­si­o­nado com o que vê, ele chama Miss Torso. Da mesma e única janela vê outra mulher na cala­mi­tosa soli­dão sen­ti­men­tal que ante­cipa, em meio-século, uma soli­dão de face­book e chama-lhe Miss Lonelyhe­art. James Stewart (Jeff no filme) está imo­bi­li­zado e é quase um demiurgo. Vê e sobre o que vê, com mais liber­dade do que o primeiro-ministro de um país em cha­mas, pode efa­bu­lar um crime ou con­jec­tu­rar sonhos para as silhu­e­tas dos pré­dios em frente.

Jeff chega mesmo a deli­rar exces­sos que Hit­ch­cock cor­tou na mon­ta­gem final. Vem morar naque­las tra­sei­ras do mundo um par recém-casado. De cada vez que ele vem à janela, para um cigarro, uma sôfrega ten­ta­tiva de res­pi­rar, ela arrasta-o para den­tro, tão den­tro quanto ima­gi­nar se queira, e corre o estore impe­ra­tivo, escan­da­loso. Mas havia uma cena em que o noivo resis­tia e ficava à janela. “Começa sem mim,” gri­tava a exaus­tão dele.

“Começa sem mim”, não tives­sem cor­tado a cena, era suges­tão para incen­diar, no nosso voyeu­rismo, uma expec­ta­tiva sufo­cada. Tal­vez por isso, o noivo res­pi­rasse fundo duas vezes e vol­tasse para den­tro, mas escan­ca­rando o estore que reve­lava a noiva à mesa, a come­çar a jogar mais uma par­tida de xadrez.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia. 

2 Comentários para “Começa sem mim”

  1. Quem viu e mesmo quem não viu Rear Win­dow, sabe que o filme é a his­tó­ria de um homem quase tão imo­bi­li­zado como o Por­tu­gal dos nos­sos dias. Sérgio Vaz é jornalista pro­fis­si­o­nal, con­fi­nado a casa por causa de uma aposentadoria. Da sua janela(redação) vê as redações do outro lado do confino. É das redações alheias que, por exem­plo, vê o tra­seiro do lulo-petismo a que, agra­da­vel­mente impres­si­o­nado com o que vê, ele chama “Más notícias do país da Dilma”. Da mesma e única janela vê outra mulher na cala­mi­tosa soli­dão sen­ti­men­tal que ante­cipa, em cinco-séculos, uma soli­dão de face­book e chama-lhe utópia. Sérgio Vaz está imo­bi­li­zado e é quase um demiurgo. Vê e sobre o que vê, com mais liber­dade do que os autores que edita, hipotético primeiro-ministro de um país em cha­mas, pode efa­bu­lar um crime ou con­jec­tu­rar sonhos para as silhu­e­tas dos pré­dios em frente.
    Me faltam palavras, aposso=me das palavras de MSFonseca, confesso-me um ladrão das palavras e das idéias do português para me contrapor aos textos reacionários editados aqui.

  2. Oi Miltinho,
    Como nós dizemos aqui e não sei se vocês dizem aí, muito bem caçada a forma como parafraseou a crónica sobre o homem com a perna de gesso. Gostei e sinta-se à vontade para dar a volta ao texto.
    Um abraço

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