Zamenhof?! Quem é esse cara?

1. Quando eu era menino, como todo bom brasileiro, acho, aprendi a língua do Pê. A gente falava com amigos, acreditando que ninguém entendia. Pra quem nunca ouviu falar disso, eis a regra: após cada sílaba, repete-se a mesma, substituindo-se cada consoante pela letra P; a palavra dobra de tamanho.

Exemplo: Topôdospôs ospôs popôlípitipicospôs dopô Brapasilpil sãopão sapafapadospôs.

Algumas crianças mais metidas diziam que falavam a língua do Tê, do Zê, etc. É só substituir o Pê e está feita a língua. Para mal das crianças metidas, o Pê sempre reinou soberano e as outras línguas eram vassalos de nada.

Objetivo? Não ser entendido. Exibir habilidades.

Houve um dia em que descobri que havia um dialeto dentro da língua do Pê. Uma língua mais pobre, um “sermo vulgaris”. Algo como falar “os menino comeu os peixe”. Em vez de repetir a sílaba, falava-se “PÊ” antes dela.

Exemplo: Pêmuipêtos pêpopêlípêtipêcos pêbrapêsipêleipêros pêssão pêlapêdrões.

Na adolescência, Angela, irmã mais nova, que estudava num colégio só para moças, o Paulo de Frontin, apareceu com uma outra língua. Essa, sim!, sofisticada. Era como falar grego, latim ou alemão. Era difícil de aprender mas, após alguma prática, era a glória. Eis a regra: as sílabas sofriam acréscimo, conforme sua vogal: áik, ênder, óber, ímis, ufúks (havia variantes). Consoante pós-vogal e til eram falados em separado.

Exemplo: Nóber Bráik-zímis-éle náik-óber-til háik páik-érre-tímis-dóber-ésse máik-ésse quáik-drímis-lháik-ésse.

Chegamos a conversar nessa língua louca.

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2. A humanidade fala mais de seis mil línguas. Alguém resolver que vai inventar uma língua a mais, parece coisa totalmente sem sentido, coisa de doido. Com que objetivo? No entanto, em 1532, Juan Luis Vives, judeu nascido na Espanha (mas que de lá saíu, após a morte de seus parentes, pela Inquisição), amigo de Erasmo de Roterdam e Tomás Morus, e que, como todos os humanistas da época, publicava em latim, escreveu o seguinte: “Seria uma felicidade se houvesse uma língua única, que pudesse ser utilizada por todos os povos… O latim vai desaparecer. Então uma grande confusão dominará todas as ciências e os povos viverão em total isolamento”.

Na verdade, dizer que o “latim vai desaparecer” é eufemismo. O latim já estava desaparecendo. A filosofia e a ciência eram escritas em latim mas as línguas nacionais já criavam suas literaturas. Pensemos na Divina Comédia de Dante (1307!), nas obras de Gil Vicente, Juan de Encina, nos poemas de Leonardo e Michelangelo (isto, em torno de 1500 e anos seguintes). O Príncipe, de Maquiavel, é de 1513, em italiano (mas traz os títulos, curiosamente, em latim).

No século XIX houve diversas tentativas de se criar uma língua que substituísse o latim nas publicações científicas e nas relações entre falantes de línguas diferentes. A que mais teve sucesso foi o volapuk. Apesar de ter conseguido três congressos internacionais, o volapuk acabou perdendo o prestígio por causa da sua própria estrutura e rigidez: as palavras eram agrupadas de acordo com categorias e suas variações de gênero, número, tempo verbal, etc. Essa língua, sim, era coisa de louco. Artificialíssima.

Em 1887 Lázaro Luis Zamenhof lançou as bases do Esperanto.

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3. Não pretendo aqui fazer a apologia do Esperanto nem falar de suas características. Antes de manifestar minha intenção, dizer apenas que a maioria das pessoas não sabe o verdadeiro objetivo da língua Esperanto: muita gente acredita que o Esperanto pretende substituir as línguas do mundo e se tornar a língua universal; falta de informação. O Esperanto foi criado para ser falado por pessoas de idiomas maternos diferentes, em substituição à prática milenar de estrangeiros se comunicarem na língua do país mais poderoso de cada época.

Minha intenção, por agora, é divagar sobre este homem chamado Zamenhof (1859-1917). Judeu nascido numa cidade polonesa, durante um tempo invadida pelos alemães mas tomada pelos russos. Como judeu, falava ídiche; como polonês, falava polonês; falava russo com o pai e com habitantes da cidade falava alemão; na escola estudava o latim e o grego e na sinagoga exercitava o hebraico. No dia em que completava 19 anos, numa reunião com jovens amigos, cantou um pequeno hino numa lingua que andava inventando e que ele pretendia tornar a segunda língua de todas as pessoas do mundo. Foi encaminhado a Moscou a seguir, para estudar medicina, e durante esta ausência, de medo da censura tzarista, o pai queimou suas anotações.

Durante os estudos na Rússia, Zamenhof chegou a fazer uma gramática de ídiche que pudesse unificar as diversas variantes que existiam. Lituanos, russos, poloneses, alemães, cada grupo falava um ídiche particular. Não nos esqueçamos, porém, de que o ídiche funcionava para os judeus como uma língua internacional no leste europeu e nos países do norte. (Havia espalhada pelo mundo, desde a expulsão dos judeus da península ibérica, uma outra língua que outra coisa não é se não um espanhol modificado – o ladino, nalgum tempo chamado de judeu-espanhol).

Mas novamente na sua cidade, voltou ao projeto de criação de uma língua internacional. E em 1887, saíu a primeira publicação em Esperanto. Uma pequena gramática com um pequeno vocabulário e um convite para que as pessoas interessadas entrassem em contato com ele, para que ele criasse uma lista de endereços e a distribuísse entre todos. Alea jacta fuit.

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4. Gostaria de tentar apresentar, para quem não tem idéia, a dimensão da inteligência ou do gênio desse homem que resolveu inventar uma língua, com um objetivo altruísta, e tentar discutir se, dessa forma, ele se constituíu ou não num benfeitor da humanidade. Ou, quem sabe, num grande artista.

Após a elaboração de toda a estrutura da língua, com suas particularidades de vocabulário e regras gramaticais, Zamenhof resolveu colocar seu Frankenstein à prova. E pôs-se a traduzir… o Hamlet, de Shakespeare. A escolha já é algum indício. Levou, de acordo com um biógrafo, perto de oito anos. Segundo suas cartas, foi durante essa tradução que ele percebeu nuances e peculiaridades linguísticas, sobre as quais nunca tinha pensado. E, a partir daí, foi aperfeiçoando seu trabalho. Algo como cuidar dos detalhes de uma escultura descomunal.

Em congressos e correspondência nos anos seguintes, Zamenhof, humildemente, sempre se manifestou favorável ao uso de bom senso sobre sua invenção, devendo ela receber mudanças que fossem consideradas aperfeiçoamentos necessários. E no entanto, nesses cento e vinte e quatro anos, a língua praticamente nada sofreu. Alguns grandes esperantistas criaram novas maneiras de adequar certos pensamentos ao Esperanto, mas a estrutura original se conserva até hoje. O Frankenstein, pois, mostrou-se muito mais uma gigantesca obra cheia de harmonia e correção, do que algo monstruoso.

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5. Continuando um trabalho cujo objetivo era exemplificar a possibilidade de o Esperanto vir a se tornar uma língua completa, densa, expressiva e profunda, o homenzinho tenaz continuou seu trabalho de traduções. Ele não era fácil, realmente. Durante a vida traduziu: do alemão, de Goethe, Ifigênia em Táuride e, de Schiller, Os Salteadores; do francês, de Molière, Georges Dandin; do russo, de Gogol, O Inspetor; e, do hebraico, todo o Velho Testamento. Há outras obras de tradução, além de poemas originais e uma grande quantidade de cartas e discursos. Sempre num estilo limpo, harmonioso, e, sobretudo, extremamente claro. O Velho Testamento é considerado por muitos, como a mais perfeita tradução já feita em qualquer língua.

Esta característica que tem o Esperanto de possibilitar traduções impecáveis se deve à grande flexibilidade de sua estrutura linguística, sobre o quê não pretendo divagar.

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6. O Esperanto se mostra cada vez mais como uma realidade a ser enfrentada pelo mundo de hoje. Não é por acaso que países como França e Inglaterra resistem em introduzir seu estudo nas escolas. Todavia, a Comunidade Européia enfrenta sérios problemas com relação a um idioma oficial. Mas há, sim, dez vezes sim, um grande preconceito sobre a aceitação de uma língua inventada. As autoridades pretendem ignorar que obras do mundo inteiro continuam sendo traduzidas para o Esperanto e falantes do mundo inteiro já se comunicam nessa língua. Seu uso na internet já é maior do que o uso de algumas línguas nacionais, como o dinamarquês, por exemplo; sem nenhum detrimento dessa língua, mas como um aspecto do moderno quadro das comunicações humanas.

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7. Antes de terminar, duas historinhas:

a. quando do centenário do Esperanto, em 1987, a Associação Italiana lançou dois cartazes: num, Charles Chaplin, e o texto: Chaplin amava o Esperanto. Hitler, o odiava. Por quê? (no filme O Grande Ditador, os letreiros das lojas do gueto estão escritos em Esperanto); no outro, Eistein e o texto: Eistein amava o Esperanto. Stálin o odiava. Por quê? (Consta na história da língua que durante o Stanilismo foi destruida uma tradução completa de Os Irmãos Karamazov).

b. quero citar um texto do livro O que é Esperanto, no. 185 da Coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense, 1992, de Izabel Cristina Oliveira Santiago:

“Foi lá em Brasília (Congresso Internacional de 1981), numa dessas noites de bate-papo e cerveja, que dei comigo casualmente numa mesa de bar rodeada de novos amigos: uma holandesa, um inglês, os canadenses, a chinesa, os russos e o nigeriano ao lado do punk dinamarquês. Acordei de repente para o austral onírico do momento, imaginando com um arrepio John Lennon cantando “Imagine” ao fundo… Sonho não era. Apenas uma outra realidade. Tida por utópica, pouco conhecida, mas comum a alguns milhões de pessoas no mundo.”

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8. Vamos tirar o chapéu! Com a devida humildade e sem preconceito. Inventar uma língua que funciona, que permite leitura de livros fabulosos de todos os povos, que permite comunicação verbal e escrita entre todas as gentes, que é capaz de traduzir uma anedota indecente mas também obras de Camões, García Márquez, Descartes, Exupéry e tantos e tantos e tantos mais… não é pra qualquer um.

Nãopão épé prapá qualpalquerper umpum. Opô caparapa épé dopô pepêrupu.

Zamenhof! Esse é o cara.

Campo Largo, 23 de agosto de 2011.

 

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