Vem cá, quem toca a flauta em “London, London”?

– Vem cá, você se lembra da gravação do Caetano de “London, London”, aquela de 1971? Você tem ela? Então ouça, ouça a flauta, que coisa espetacular. Quem é que toca a flauta, você sabe? Depois me liga pra me agradecer pela lembrança.

Ao telefone, Melchíades tinha ido direto ao assunto, com um tom de urgência e de comando na voz. Como o conheço há muitas décadas, não fiquei espantado: conheço o tom, é assim mesmo.

Obediente, botei pra tocar “London, London” no lugar mais rápido, o computador – a gravação original, do disco de 1971, feito em Londres, aquele em que Caetano aparece com o cabelo imenso, uma barbicha esquisita, com um casaco de lã e cara de desespero. Claro que eu me lembrava do solo de flauta que percorre toda a gravação – de fato é belíssima, a flauta, espetacular, como definiu e comandou Melchíades.

Tenho no computador e no iPod quatro versões de “London, London”. Além da original, tem a de Gal Costa no Acústico MTV de 1997, uma da menina Cibelle, e a de Caetano e Paulo Ricardo, gravada ao vivo no programa Chico & Caetano, da Rede Globo, nos anos 80, depois lançada em LP e mais tarde em CD. É emocionante, essa versão de Caetano e do então ídolo de milhões de jovens Paulo Ricardo; o RPM havia gravado a música, e foi ótimo que toda uma nova geração tenha ficado conhecendo a beleza que Caetano criou no exílio onde não se sabe se por sorte ou por castigo deu de parar. Me lembro que, naquela época, minha filha Fernanda, então com uns 12 anos, e minha amiga Mônica Maia, então pouco mais velha que Fernanda, compartilhavam uma paixão pelo RPM; não me lembro, mas seguramente devo ter contado para elas a história do exílio de Caetano e Gil; devo ter falado para elas o que diz a letra extasiante.

Este país é tão jovem e tem a memória tão curta que me lembro ter lido que o próprio Moreno, o filho mais velho de Caetano, surpreendeu-se ao saber que “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” havia sido composta por Roberto Carlos para seu pai. Isso foi em 1992, durante a turnê de Caetano que resultaria no LP e CD duplos Circuladô ao Vivo, que contém a versão de Caetano para a canção em homenagem a ele. Em 1992 fazia 21 anos que Roberto havia gravado a música, em seu disco de 1971, um dos melhores de sua carreira, se não o melhor, o que tem “Detalhes”, “Como Dois e Dois”, “Traumas”, “Todos Estão Surdos”. Em 21 anos o país havia se esquecido da visita de Roberto à casa em que um amargurado Caetano sofria no seu exílio londrino – “O Rei esteve na minha casa e eu chorei”, escreveu ele num de seus belos textos publicados no Pasquim.

Mas tergiversei um pouco.

Das quatro versões de “London, London” que tenho no computador e no iPod, a mais bela é sem dúvida a original, a da flauta fantástica, sinuosa, insinuante, que acompanha os versos absurdamente tristes do artista desterrado pela imbecilidade e truculência do regime dos generais.

É claro que eu me lembrava dela. Nunca esqueci. Faz quatro décadas que a ouço. Disse isso no telefonema de retorno para o Melchíades, mas nem sei se ele ouviu direito. Estava numa excitação de criança que ganha presente novo; contou que tem ouvido a música sem parar, num fone de ouvido sensacional, desses grandões, que os músicos usam no estúdio. Sempre gostei de fones de ouvidos grandões, desses que os músicos usam no estúdio; uma das sessões de fotos de Fernanda criança de que mais gosto é uma em que ela, esplendorosamente bela aos sete, oito anos de idade, com um sorriso lindérrimo, segura um leão quase do tamanho dela, um dos brinquedos favoritos da Inês, com meus fones de ouvido gigantescos, quase do tamanho do rosto dela. Pensei em contar essas coisas pro Melchíades, mas desisti. Não tinha muito a ver.

A questão era: quem toca a flauta na gravação original de “London, London”?

 O bordão que aprendemos com Fabio De Domenico

“Quem toca o baixo?”

Essa pergunta virou um bordão para mim faz algum tempo. Mary e eu volta e meia brincamos com isso: Mas quem toca o baixo?

É mais uma das muitas histórias de Fabio De Domenico, de quem já publiquei um texto aqui. Fabio é uma figuraça, dessas que se não existissem a gente precisaria inventar. Um apaixonado por música, sabe de tudo e mais um pouco; conhece umas 432 mil bandas pós terceira geração do punk inglês de que jamais ouvi falar; das pessoas que conheço, acho que o único páreo para Fabio é Carlos Bêla. Apesar de ser um absoluto ignorante comparado com Fabio, compartilho com ele algumas coisas básicas: ele, felizmente, também gosta de Dylan, George Harrison, Mark Knopfler, James Taylor, Carole King.

Com ouvidos privilegiados, Fabio é um competentíssimo, respeitadíssimo técnico de som. Instalou o som de várias lojas da 2001, a melhor locadora de DVDs de São Paulo, o do apartamento de Fernando Henrique, o de centenas de novos-ricos. Um dia, alguns anos atrás, quando a febre do iPod ainda não tinha se espalhado muito, me contou, estarrecido:

– “O cara tem uma puta apartamento, coisa de nego muito rico. Comprou um som caríssimo. Instalei, um som da pesada. Aí perguntei pra ele onde ele guardava os discos, e ele ficou me olhando como se eu tivesse acabado de cair da lua. E falou: ‘Discos? Eu não vou ocupar espaço com discos; boto tudo em MP3’.”

Tomou mais um gole, e arrematou, absolutamente chocado, estarrecidíssimo:

– “Como é que o cara vai saber quem toca o baixo?”

 Os discos vão acabar. Ou não

Tem no mínimo uns dez, talvez 15 anos que dizem que os discos vão acabar. Anunciaram e garantiram que os discos vão acabar.

É bem provável que acabem. Talvez acabem. Será?

Todos os discos, não só os de som. O DVD, embora mais jovem que o CD, também vai acabar, dizem, prometem, garantem. Elói Gertel, ao se mudar para o Guarujá, botou toda sua gigantesca coleção de DVDs dentro de um hard disk. Os DVDs originais ocupam espaço demais, e agora já se pode viver sem o suporte físico.

Uns dois anos atrás Carlos Bêla – até então um comprador de discos fanático, mais até do que eu – me anunciou que estava parando de comprar discos. Ademir e Regina, os donos da Pop’s, na Teodoro Sampaio, que eu há décadas considero (assim como muita gente boa) a melhor loja de discos de São Paulo, já sentiram isso no bolso: o Carlos sumiu da Pop’s. Compra música pela internet, sem o suporte físico.

Outro dia mesmo anunciou-se que está para fechar a Modern Sound, a maior loja de discos de Copacabana – a última que ainda resistia. Quinze anos atrás eram acho que 40, no bairro princesinha do mar; em dezembro passado só restava a Modern Sound, a maior de todas. E ela também capitulou.

Eu mesmo fazia muitos, muitos meses que não ia à Pop’s. Outro dia, em dezembro, fui; Ademir e Regina estavam lá do mesmo jeito que conheço desde os anos 70; a loja estava cheia do mesmo jeito.

Pedro Fernandes aderiu ao novo LP, aquele de não sei quantos milímetros de espessura, não sei quantos gramas de peso, não sei quantas dezenas de reais cada. Enzo Scaletti me contou em Curitiba que comprou um toca-discos com saída USB: toca o LP e vai diretamente para o computador, e daí para o iPod. Há vários modelos na praça, à disposição, me disse ele, alegre feito um menino, como Melchíades redescobrindo a beleza da flauta de “London, London”; é o maior barato, garantiu, me incentivando a comprar um desses.

Quando chegou o CD, o Ademir da Pop’s demorou um pouco para aderir à nova moda, que de início considerou passageira. Me lembro de ele, um apaixonado por LPs, me perguntar, cético: “Cê acha que esse negócio vai pegar mesmo?” Hoje a Pop’s não tem espaço para o novo LP, mas vejo dezenas deles todas as vezes que vou a qualquer uma das lojas da Livraria Cultura, ou da Saraiva. A ex-Columbia, hoje CBS, está relançando todos os primeiros discos de Dylan no formato do novo LP. Voltou a funcionar uma fábrica de LPs no Rio de Janeiro, estão sendo relançados em LP  todos os discos do Legião – que Fernanda me aplicou quando saíram.

Domingo agora, dia 23 de janeiro, ao final do show de raríssima re-re-reunião do Rumo, uma turba sedenta cercou o sujeito que vendia o novo CD que está sendo lançado pela Biscoito Fino, Sopa de Concha, só com músicas hoje pouquíssimo conhecidas dos anos 30 e 40; Geraldo Leite ouviu centenas de canções gravadas em 78 rpm, no Instituto Moreira Salles, e escolheu as 15 do disco, 14 das quais o Rumo tocou no Sesc Vila Mariana.

Mas o disco vai acabar. Os jornais vão acabar. Sei, sei.

Como é que vamos saber quem toca o baixo?

Depois que Melchíades ligou, e que ouvi pela bilionésima vez a flauta maravilhosa em “London, London”, fui pegar o CD. O encarte traz as letras das músicas – o LP, eu me lembrava bem, não tinha as letras. O encarte traz informações: o disco foi produzido por Lou Reizner e Ralph Mace, gravado no Chappell’s Studio. Os engenheiros – e os engenheiros de som ingleses são os melhores do mundo – foram John Timperley e John Iles. Os arranjos de cordas são de Phil Ryan. O design da capa é de Linda Glover, e as fotografias de Johnny Clamp.

Mas não tem o nome de quem tocou a flauta extraordinária.

Fui ao LP. Sim, porque eu guardei algumas centenas de LPs, talvez uns mil e tantos. Guardei os que não transferi ainda para CD, ou que não recomprei como CD. E alguns, apesar de já ter em CD, guardei por puro gosto, pelo valor afetivo. Aí fui ao LP, por imaginar que talvez o LP – cuja capa tinha muito mais espaço que o CD – pudesse ter mais informações.

Nada. Neca de pitibiribas. Todas as informações constantes do LP Caetano Veloso, de 1971 (não houve encarte na edição original, me lembro bem disso), foram transcritas no encarte do CD.

Não sei quem tocou a flauta em “London, London”. Aliás, também não dá para saber quem tocou o baixo.

Se a capa do LP e a capa do CD não informam quem tocou o baixo, quem tocou a flauta, por que então usar o precioso espaço do meu pequeno apartamento guardando o LP e o CD, se as canções, o que importa mesmo, todas já estão no computador e no iPod, sem ocupar espaço físico algum?

“The moral of  this story, the moral of this song” 

Bem, mas qual é a moral da história? O que esta anotação pretende dizer?

Não tem moral alguma – esta anotação não pretende ter mensagem alguma. Não é uma defesa do disco, do “suporte físico” – nem um ataque a ele. Não é uma defesa de tese – não tenho tese alguma a defender. Sei lá se o disco vai acabar, ou não vai acabar.

Só tive vontade de escrever umas linhas, depois que Valdir escreveu sobre a Remington dele e a lauda, e Melchíades ligou pra me chamar atenção para a beleza da flauta que a gente não sabe quem tocou. Só isso. Memórias, fiapos de lembranças. Não serve pra nada, não, é só isso o meu baião. É só um suelto, como se dizia antigamente, quando as músicas vinham em discos e as pessoas queriam saber quem tocava o baixo.

 26 de janeiro de 2010

7 Comentários para “Vem cá, quem toca a flauta em “London, London”?”

  1. Excelente essa sua visita à horta da Luzia. Sobre o fone de ouvido, o meu não é dos grandões; é desses pequeninos, mas que tem som stereo como nunca conhecera antes, da marca “v.moda” (o Google traz informações a respeito). Outra coisa, ouvir a flauta no computador (o que fiz também) não revela toda a riqueza e genialidade mostradas pelo intérprete. Fui então ao iPod e, rapaz, que coisa realmente emocionante

  2. Olá, Sérgio, não sei se vai lembrar de mim. Já fiz um comentário uma vez que você citou o Fábio De Domênico. Ele que montou todo som em casa (apesar de eu não estar incluída nesses “novos ricos” que você falou!rsrsrsrs). O Fábio é uma figura mesmo! Adorei seu texto! Mas você não conseguiu saber quem toca a flauta…nem o Fábio soube te informar? Ele deve estar querendo se suicidar por não saber te responder essa!!!hahahaha. Parabéns pelo texto! Um abraço! Lilian

  3. Fantástica e genial colocação,quem toca a flauta também não sei, mas, com certeza a flauta e o baixo são muito melhor ouvidos no bolachão(LP). Um forte abraço.

  4. O mesmo disseram dos livros…..
    e é claro que os livros não vão acabar….
    A (desculpe a palavra, tio avô querido) bosta mesmo é ver o cd, o lp e o vinil virarem “coisas” de elite, materiais caros para os apreciadores que oscilam entre burguesia que se interessa por cultura(que está em falta no mercado) e apaixonados por literatura e música(que normalmente não tem dinheiro.rs). Isso além de não sustentar o mercado, deixa ele preso a nichos muito específicos. Mas o que fazer se a geração do ipad/mp3/ipod só se interessa por bits/hits do momento e jornais de $0,25 sensacionalistas. É meu caro, falta gente no mundo querendo saber quem tocou a flauta de London, london, essa e outras perguntas que o google não sabe responder.

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