Os tempos são outros

Li no jornal. Alguém – quem? –, disse que não se usa mais escrever crônicas sobre falta de assunto, como Rubem Braga se cansou – ou não? – de fazer. Os tempos são outros.

Pena. Se me fosse dado o direito de imitar o mestre, hoje eu escreveria sobre o nada. No máximo, uma borboleta pousada – ou pousando – na janela.

Impossível. São outros os tempos, sim. Borboletas já não pousam em janelas. Nem em lugar nenhum.

De vez em quando, por um ou outro motivo, nos damos conta do sumiço de coisas antes corriqueiras. Os sonetos, por exemplo.

Eternos companheiros “da aurora da minha vida, que os anos não trazem mais”, eles andam desaparecendo. Não apenas das antologias escolares, que também não sei se ainda existem, mas – sobretudo – do dia a dia de nossas vidas, frequentemente sem aurora alguma.

Desolada com a falta de borboletas, antologias, sonetos e auroras, e ciente de que crônicas sobre o nada estão fora de moda, eu imaginava tudo – ou quase tudo – perdido, quando me lembrei.

Dia desses – segunda-feira, calor abrasador –, entrei no consultório de um médico. Um amigo, arrisco.

Arrisco. Desde a primeira consulta, senti que nos entenderíamos. Ele gostava de falar, percebi logo. De ouvir, também, exultei, em seguida.

Muitas têm sido as conversas. Criamos filhos, descobrimos cidades, viajamos. Lamentamos tragédias, preconceitos. Relembramos músicas, filmes, livros. Nomes, acontecimentos, histórias. Não poucas vezes, consertamos o mundo.

Dia desses, segunda-feira, calor abrasador, enquanto cuidava de meus pontos fracos, lembrando-se do tsunami no Japão, citou o “mar, belo mar selvagem das nossas praias solitárias”, e disse que Vicente de Carvalho havia sido seu poeta preferido, nos tempos de colégio. Ainda sabia de cor muitos de seus poemas, sonetos.

— Sonetos?

— Sonetos. Do Vicente de Carvalho e de vários outros poetas. Ainda me lembro.

Naquela tarde, ouvi versos de Camões, Raul de Leoni, Casimiro de Abreu – ah, “aurora da minha vida”… –, Augusto dos Anjos, Castro Alves – “senhor Deus dos desgraçados, dizei-me vós, senhor Deus, se é delírio, ou se é verdade…” –, Jorge de Lima, Cruz e Souza, Bocage, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Alphonsus de Guimaraens, sei lá quem mais. Melhor, sei, sim. Raimundo Correia: “vai-se a primeira pomba desgarrada”…

Bendita seja a memória, que faz parte da tribo de Deus, pensei. Tarda, não falta.

Entre mares selvagens, delírios, verdades e pombas desgarradas, não senti agulhas, dores, ou ardores.

Senti, sim, a presença de alguém que me arrisco a chamar de amigo. E que, neste momento em que escrevo, à distância, sem saber, acaba de me salvar da terrível ameaça da crônica proibida. Aquela, sobre o nada.

Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprograma.

Um comentário para “Os tempos são outros”

  1. Pois é, Vivina, os sonetos e as antologias andam desaparecendo, quando não, são substituídos numa ação reconhecidamente estratégica do governo, cuja intenção não preciso destacar aqui! Um livro do MEC propõe que ensinar a falar e a escrever errado é o que é certo para os estudantes brasileiros. Muito boa tua crônica! Entre outras coisas, ela resgata nossa credibilidade na boa leitura.

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