Historinhas de redação (7): os olhinhos infantis

Na sua época de ouro, o Jornal da Tarde teve grandes phraseurs, mas creio que Humberto Werneck era um dos maiores, senão o maior.

O Jornal da Tarde hoje não tem mais nada a ver com seus dias gloriosos; Humberto continua sendo um grande phraseur, dos melhores que há. Não muito tempo atrás, numa reunião para arrecadar fundos para um amigo nosso do velho JT que disputava a eleição para deputado, alguém falou em “nós”, referindo-se, claro, ao partido do candidato, logicamente o partido apoiado pelos presentes todos, e Humberto, com olhar espantado, perguntou: “Nós quem?”

Humberto gostava de contar uma história de seus tempos de estudante. Um professor de Português que infelizmente teve Humberto como aluno estava ensinando à sua classe que, num bom texto, não se deve repetir a mesma palavra. “Se você usar, por exemplo, a palavra incêndio, num parágrafo, no parágrafo seguinte não a repita. Use sinistro.” Ao que o aluno Humberto Werneck levantou a mão, para ter a palavra, e disse:

– “Professor, sinistro é o senhor.”

Humberto entrou no Jornal da Tarde no mesmo ano que eu, 1970. Tinha já um nome respeitável em Minas, eu não tinha nome algum. (Humberto viraria um nome respeitável em todo o Brasil; eu jamais viraria um nome respeitável em lugar algum.)

Naquele começo dos anos 70, Eric Nepomuceno ainda não chegava a ser um nome respeitável. Depois viraria – amigo de Chico Buarque, de Gabriel García Márquez, de Eduardo Galeano, entrevistador privilegiado do primeiro, tradutor dos dois últimos, figura importante no período do lulo-petismo, aglutinador dos geniais intelectuais de esquerda em prol da grande causa eleger Dilma Rousseff presidente. Naquele tempo longínquo, era apenas o Bicho Eric – apelido advindo de sua mania de usar em cada frase a expressão “bicho”, coisa de Roberto Carlos, portanto coisa menor, inferior; a intelligentsia achava Roberto Carlos um horror.

Gênio sempre à frente do seu tempo, capaz, já que se falou em “bicho”, de perceber antes da imensa maioria a grandeza e a importância de Roberto, Caetano Veloso escreveu naquela época, para Bethânia cantar, a maravilha que é “Esse Cara” – “ah, que esse cara tem me consumido a mim e a tudo o que eu quis, com seus olhinhos infantis, com os olhos de um bandido (…) ele está na minha vida porque quer, eu estou pro que der e vier (…) ele é quem quer, ele é o homem, eu sou apenas uma mulher”.

Humberto tinha que rever e melhorar os textos, entre outros, do Bicho Eric. Bicho Eric, jovem ego já bastante inflado, entregava seus textos com propostas de títulos e olhinhos – olhinho, no jargão jornalístico, é aquela linha fina que vem embaixo dos títulos.

Numa noite, no fechamento, Humberto soltou a frase:

– O Bicho Eric tem me consumido com seus olhinhos infantis.

Postado em 20/1/2011

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