A Espécie Humana. Capítulo 58

meu pai abotoa seu enorme casaco preto.

pai, vou acordar o menino.

não!

ele vai ficar muito triste.

ele resolve se acorda ou não. vamos.

os nossos cães se levantaram. rodearam meu pai, rabos balançando.

adeus!, Luluva. adeus!, Aklia. Ishtar, adeus! adeus!, Lilith. adeus! meninão, Caim! criaturinhas da vida… adeus! minhas crianças…

meus olhos se encheram de lágrimas.

vamos, filho. vamos até o portão.

meu pai abriu o portão, passou para o outro lado e o fechou.

vou junto até a rua, pai.

não, filho. fique do lado de dentro.

rituais da estética?, pai!, perguntei, já chorando.

não chore, não chore. adeus.

meu pai pegou-me nos ombros e olhou-me fixamente. então ouvimos um grito desesperado:

vovô!

viu?, filho. teu filho quis acordar.

o menino veio correndo sobre o gramado, descalço. levantei-o e ele passou sobre o portão para o colo de meu pai.

vovô, eu também quero dar um abraço!

e apertou meu pai num abraço comovido.

um longo silêncio.

pra onde você vai?, vovô!

meu pai olhou-o e sorriu. o menino olhou pra mim, interrogativo. olhei-o sério, não sabia o que dizer.

vovô, você já morreu?

já.

então você é um fantasma?

não! se eu fosse fantasma eu era luz e sopro, não podia ter você no colo.

comecei a chorar novamente.

então, o quê que você é?

veja! sou uma criatura, a quem teu pai pediu que viesse pra participar de um livro. por isso eu sou de carne e osso, viu?

e balançou meu filho no alto.

veja, eu aguento você e você já está ficando pesado.

o menino virou-se pra mim.

e eu?, pai! eu já morri?

não!, filho. não! venha no meu colo.

e ele passou pro meu colo. beijei-o e misturei um sorriso ao meu choro convulsionado.

não, claro que não!

e tendo entre eu e meu pai o portão de madeira, pela última vez, três abraços num só abraço.

adeus, crianças, adeus!

meu pai ia indo, dois passos.

pai! eu gritei. ele se voltou.

o seu saco de viagem! esqueceu!

ele sorriu:

não o esqueci, filho. não o esqueci. adeus, crianças.

e para o menino:

vou por cima ou por baixo?

em cima tem a capelinha. em baixo tem a ponte.

meu pai sorriu: nada de capelinha. vou pela ponte. jogou-nos um beijo de dedo.

meu coração queria explodir. como prolongar isto? inda que por um segundo! pai! pai! uma última palavra.

filho! por quê? uma última palavra… por quê? uma última palavra…

e, após um curto silêncio:

ai de vocês!, os vivos.

virou-se rápido e foi-se e antes que chegasse à rua, desapareceu por completo.

pai, o vovô não passou pela rua.

passou, filho. deve ser a neblina.

pai, não tem neblina.

tem sim, filho. tem neblina dentro das nossas almas.

A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.

Para ler o capítulo anterior.

Para ler a partir do capítulo O.

Continua na semana que vem.

 

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