Uma canção de Chico, outra também

Há alguns meses – setembro, outubro – um e-mail de Leonel Prata me contava que ele estava trabalhando na edição de um livro sobre a obra do Chico. O Buarque, é bom que se esclareça. Afinal, convivemos com Chicos e mais Chicos, todos merecidamente conhecidos.

Chico Alves, Chico Anísio, Chico Caruso, Chico César, Chico Science, Chico Lobo, Chico Mendes, Chico Pinheiro, Chico Xavier. Ah, Chico Mineiro, “meu legítimo irmão”.

Um pouco antes do Natal, altas horas, conversas sem fim, o consenso e o bom senso familiares definiram, por unanimidade, qual seria o presente do caçula da casa, freqüentador fiel – um sábado sim, outro também – de um certo bar, na Vila Madalena.

Se o caçula, 29 anos, um sábado sim, outro também, procurava o certo bar, a razão – ou melhor, as razões – eram a voz intimista do cantor e seu rico repertório: uma canção do Chico, outra também.

Se o caçula corria com tanto empenho atrás das palavras e das melodias do Chico, que presente seria melhor que o anunciado no e-mail do Leonel? O livro de Wagner Homem, Chico Buarque – Histórias de Canções, cuidadosamente embrulhado para presente, entrou em nossas vidas na noite de Natal e, como imaginávamos, ficou.

Confesso, tentei ler o livro várias vezes. Vãs tentativas. Mal o abria, meu filho aparecia, do nada:

— Não, mãe, fala aí. Fala aí que música você quer saber, que história. Te conto.

— Tudo bem, filho, mas leitura é leitura.

— Sei disso desde criança, mãe. O prazer de ler, quem não sabe? Nessa casa aqui, todo mundo sabe.

— Então, filho? Se todo mundo sabe…

— Mas você não sabe o prazer que é te contar as histórias das músicas do Chico. Essas músicas que você conhece desde os festivais, mãe. Desde o primeiro LP, muito antes de me conhecer.

Diante de um argumento assim, resolvo ler o livro às escondidas, tarefa que estou realizando em segredo, devagar, do meu jeito. Percebendo, aos poucos, o cuidado do trabalho de Wagner Homem, dono de um texto que combina com as letras buarqueanas. Texto bonito, denso se necessário, leve quase sempre. Texto bom de ler. E bom de contar, meu filho está coberto de razão.

As histórias das canções de Chico Buarque são tão boas de contar, que Wagner Homem não resistiu.

Trilhando um caminho aparentemente sem curvas, passou da linguagem escrita à oral, “como se fosse música”, e chegou ao palco acompanhado pela voz intimista de Rogério Silva, cantor de um certo bar da Vila Madalena, aquele que meu filho visita,  um sábado sim, outro também.

Juntos, irmanados na visível emoção do encontro, autor e cantor realizam um show surpreendente, onde simplicidade e erudição, em doses certas e certeiras, dialogam com o público sobre os mais diversos temas, rindo – e chorando, por que não? – com genis, generais, moças, ancestrais. Valsinhas, modinhas.

O show surpreendente surpreende desde a primeira história, ausente no livro. História de chuva.

Na noite do primeiro show, conta Wagner, tudo indicava que o mundo acabaria em água. E, enquanto ele relembra as dificuldades daquele dia – os livros não chegavam, nem os convidados –  e cita Nelson Rodrigues, e inicia a inevitável sedução da platéia, eu me lembro de outra história de chuva.

A cidade, a mesma, essa nossa, a maior do Brasil. A época, mil novecentos e noventa e um, janeiro. As personagens, duas. Uma delas, eu.

Há muito, cansada de carros e de mim, deixara de dirigir. Andava a pé, feliz da vida.

Se chovia, andava na chuva. Há muito perdera a conta dos guarda-chuvas esquecidos – ainda hoje – em bancos, bares, farmácias, padarias, supermercados, ônibus, cafés.

Acabei me domesticando. Quando a chuva não é daquelas que carregam até a alma, convivemos civilizadamente.

A experiência, juro, chega a ser saudável. Um quase ousado desafio ao tempo. Ao contratempo.

Naquela tarde, o contratempo, forte, jorrava com tanta intensidade, que o quarteirão da minha rua só não estava absolutamente deserto, porque na esquina contrária, encharcado até as últimas conseqüências, havia surgido um homem.

— Perdeu o guarda-chuva, não – ou não quer – dirigir, pensei.

Mais próximos, desconfiei que o conhecia:

— Não, não pode ser. Um cara desses não anda assim, sozinho, desamparado, numa chuva úmida e fria, como se fosse eu.

Quando, finalmente, cruzamos passos e olhares, não precisaria de óculos para ter certeza:

— O quê que o Chico tá fazendo aqui, na minha rua, com uma chuva dessas?

Ele passou, fiquei olhando. Procurando – em vão – algo especial.

Na chuva – ao menos na chuva – éramos irremediavelmente iguais. Passos lentos, lerdos, pés pisando pesados, jeans, tênis, camisetas.

Uma única diferença: o ídolo de tantas canções enfrentava a chuva sem óculos. Os olhos verdes ainda não haviam se cansado.

Esta crônica é uma junção de novo e de velho – um texto de janeiro de 1991 publicado no Estado de Minas com o título de “Ídolo da Chuva”. Ela saiu originalmente no primeiroprograma.

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