Que os anjos recebam bem Jean Ferrat

A voz de Jean Ferrat é belíssima. É uma voz grande, poderosa, cheia, envolvente. O timbre – essa coisa pessoal, única, como a impressão digital – é bonito, é nobre, é rico.

O timbre de voz é um dom.

As pessoas podem aprender a cantar. Podem aprender respiração, podem aperfeiçoar a entonação, a afinação, a extensão.

Timbre não se aprende. É um dom.

Jean Ferrat tinha o dom. Como – meu Deus, a comparação é difícil, mas vamos tentar – Bing Crosby, Frank Sinatra, Nina Simone, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Milton Nascimento, Joan Baez, Cat Stevens.

Há excelentes cantores (falo de cantores populares; não sei absolutamente nada sobre os eruditos, os líricos) que não têm esse grande timbre de voz, não têm esse dom, mas são capazes de cantar maravilhosamente. Sabem interpretar, sabem dizer, sabem emocionar: Jacques Brel, Paul McCartney, Paul Simon, Caetano Veloso, João Gilberto, Mário Reis, Kate Wolf. São excelentes, são maravilhosos.

Mas quem tem o dom do timbre é diferente. E Ferrat tinha o dom.

As modas passam, as modas mudam. A partir dos anos 60, músicos de voz não propriamente bela surgiram e impuseram uma nova dimensão à canção popular. Bob Dylan é talvez a personificação dessa tendência que se tornou irreversível. Depois de Dylan, foi sepultada de vez a noção de que para cantar é preciso ter uma grande voz.

Acho que Ferrat foi, pelo menos em parte, uma vítima disso. Ter bela voz, voz poderosa, de timbre rico, especial, de uma certa forma ficou fora de moda. Ficou careta.

Um dia conversei sobre música popular com um casal francês muito simpático e bem informado. Falamos de Brel, de Brassens, de Moustaki. Quando falei de Ferrat, eles fecharam a cara: disseram que não gostavam de Ferrat, que Ferrat tinha a voz empostada.

Nunca me esqueci dessa conversa, num restaurante no Fisherman’s Dwarf, em San Francisco (eu estava numa viagem a trabalho pelo Jornal da Tarde, com tudo pago pela S.A. e pela PanAm, que estava lançando um vôo São Paulo-Honolulu).

O casal francês não gostava de Ferrat porque ele tinha a voz empostada. Porque ele tem o dom, e ter o dom de repente ficou careta.  

         ***

Conheci Ferrat pelo LP Ferrat chante Aragon, de 1971. Acho que quem me apresentou ao disco foi minha irmã Nilze, uma francófila como jamais vi outra pessoa. Depois comprei outros LPs dele, e também um CD de 1995, 16 Nouveaux Poèmes d’Aragon. São belas melodias, as que Ferrat canta, e sua voz é maravilhosa.

Ferrat era comunista, assim como o poeta Louis Aragon – assim como todos nós já fomos algum dia na vida, porque quem nunca foi comunista não tem generosidade (e quem continua comunista hoje ou é burro ou é mal informado). Mas o fato de que Ferrat era comunista, realçado nas notícias distribuídas pelas agências de notícias hoje, a respeito de sua morte, aos 79 anos, a rigor nem precisaria estar aqui, porque o “engajamento” não aparecia em muitas de suas músicas. Aragon, o grande poeta comunista, era um grande autor de poemas de amor, e foram esses poemas de amor que Ferrat musicou no seu disco de 1971, e depois no de 1995.

São belíssimos poemas, cheios de paixão, movidos a paixão, apaixonados pela paixão. (“O que seria de mim sem você?” “Feliz é aquele que morre de amor.” “O que você sabe da tristeza de amar?” Credo, quantos milhares de vezes ouvi essas canções.) Há referências às injustiças, aos absurdos do estado da civilização, há elogios a outros poetas, Lorca, Desnos, mas o tema permanente é o amor. E são belíssimas as melodias que Ferrat criou para emoldurá-los, e às quais deu maior grandeza ainda com sua voz grande, poderosa, cheia, envolvente.

Nenhum artista deveria ser considerado careta por ter tido o dom da bela voz.

Vou beber uma em homenagem a Jean Ferrat. Que os anjos o recebam bem.

12 e 13 de março de 2010

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