Os mágicos da bola

O futebol ensinou, em certa medida, um pouco de democracia ao Brasil. O jogo, que sempre começa em zero a zero e submete as duas equipes às mesmas regras, coloca seus praticantes em condições de igualdade no momento da disputa. (1)

Não foram poucos os nossos intelectuais que voltaram sua atenção e pesquisas a um tema que fascina não apenas o Brasil, mas tem ressonância em escala global: o futebol. Esporte que determina comportamentos culturais em todo o mundo, entre nós, o futebol ultrapassou as referências ditas populares, e além de discutido nas mesas redondas dominicais – vespertinas ou noturnas na maioria dos canais brasileiros de televisão -, passou a ser também objeto de discussões e debates universitários.

O futebol, que já foi objeto de utilização política durante o governo militar, e considerado alienante nos bancos de nossas academias nesses mesmos tempos, recebeu de nossos grandes poetas e cronistas outro tratamento, evidenciando a fruição que lhes permitiram campeonatos regionais e nacionais, copas do mundo, e, tantas vezes, o dom e mestria de nossos jogadores. Lembro aqui, para citar apenas alguns cronistas, Sergio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Nelson Rodrigues, Rubem Braga, além dos poetas Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto, que jogou futebol. Mesmo Oswald de Andrade, a propósito de uma excursão europeia triunfal do Clube Atlético Paulistano, inventou um poema quase que estritamente numérico comentando a derrota do time diante do Futebol Clube de Cette (hoje Sète, no Sul da França).

Esse jogo e o poema de Oswald foram um dos motes para o filósofo Bento Prado Jr. – na série de artigos que publicou na Folha Online – escrever sobre “literatura e o mistério da bola”. Nele, relembra Coelho Neto e Décio de Almeida Prado e toda a sorte de metáforas e expressões criadas para designar lances de futebol: entrar com o pé direito, fazer finca-pé, saber onde por o pé, usar pés de lã, entre outros. Chico Buarque, que não apenas se interessa por futebol, mas o pratica pelo menos três vezes por semana, estando ou não em turnê, no Brasil ou no exterior, apropria-se da expressão pés de lã em sua canção “Leve”, em parceria com Carlinhos Vergueiro.(2)  

O texto de Almeida Prado que Bento Prado Jr. comenta refere-se à matéria publicada em 1988, “Latejando sobre o futebol”, presente no livro “Seres, coisas, lugares”.(3) No entanto, é em seu magistral artigo “Tempo (e espaço) no futebol”, publicado na Revista da USP (4) que Décio de Almeida Prado se vê obrigado a justificar a abordagem do tema, tido como frívolo, a não ser para fanáticos entre os quais ele se incluía.

Esse seu ensaio sobre futebol é extraordinário, relembrando desde Leônidas, o homem-borracha, inventor do célebre gol de bicicleta, ocorrido no jogo São Paulo x Juventus, em 1947, a Friedenreich e seu último gol marcado no estádio do Pacaembu, “tudo simples, como nos velhos tempos”. Analisa ainda as dimensões do campo, o desafio e as regras do jogo, a missão da defesa e o papel do ataque, a evolução do esporte levando em conta a técnica e o preparo físico dos jogadores, a contribuição dos técnicos, a irradiação de uma partida,finalizando com comentários sobre Pelé, capaz de driblar e valer-se de sua inteligência, simultaneamente.

O futebol brasileiro e mundial viverá em 2010 um momento especial. Será disputada a primeira Copa em solo africano, na África do Sul, e o ano marca também os 80 anos da realização da primeira Copa do Mundo, disputada no Uruguai em 1930. Além disso, o Brasil se prepara para receber a sua segunda Copa do Mundo, 64 longos anos após sediar a primeira, em 1950.

O jogador brasileiro é o fiel retrato da simbiose entre o jogador de futebol e a bola: a facilidade do drible como recurso para abrir espaços e furar retrancas; a malandragem e malemolência da ginga de corpo, a finta no contrapé, ou a elegância ao conduzir a bola, sem precisar sequer olhar para ela.

Espelho dessa paixão brasileira, nossos craques, com sua magia dentro dos gramados, eternizaram o futebol como legítimo e inigualável produto nacional, impregnado na memória de todos os amantes desse esporte espalhados pelos quatro cantos do planeta.

(1) José Miguel Wisnik, como conferencista, no Seminário “Futebol em debate”, promovido pela Unicamp, em abril de 2009

(2) “Pense que eu cheguei de leve /machuquei você de leve / e me retirei com pés de lã”.

(3) Décio de Almeida Prado, “Seres,coisas, lugares: do teatro ao futebol”, Cia. das Letras, São Paulo, 1997

(4) Revista da USP, Décio de Almeida Prado,Tempo (e espaço) no futebol, julho e agosto, 1989, p. 15-24

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