O juiz da imprensa

Lula sabe melhor do que ninguém o quanto de sua mística ele deve à imprensa. Um dos primeiros grandes perfis do herói, talvez um dos mais importantes, sobre o operário pragmático que dirigia um movimento sindical sem se atrelar aos interesses do Partido Comunista (coisa rara na época) foi escrito por Ruy Mesquita – insuspeito de progressismo – na revista Homem Vogue, um ícone da imprensa cult no final dos anos 70.

Aquele líder proletário autêntico sem contaminação ideológica, que começava a crescer no imaginário popular, deu, na entrevista a Ruy Mesquita, uma resposta premonitória sobre a importância que a imprensa teve para sua projeção:

– A imprensa é uma ajuda muito grande que eu tive, mas se ela deixar de existir hoje, nós vamos continuar fazendo a mesma coisa. Eu nunca fiz a coisa em função da imprensa.

Essa frase pode resumir, de certa forma, a percepção utilitária que o ex-líder metalúrgico e hoje presidente da República tem a respeito da função da imprensa numa sociedade aberta e democrática.

Nesta última semana, o presidente usou seu método morde-e-assopra e do alto dos palanques nos quais passou uma boa parte deste final de mandato, depois de fazer a ressalva de que “a liberdade de imprensa é intocável”, vociferou contra ela as suas mais rudes críticas, e liberou a senha para que as suas falanges saíssem a fazer manifestações contra o “golpismo midiático”.

O motivo da fúria presidencial: as reportagens de jornais e revistas denunciando quebras de sigilo fiscal de adversários ou tráfico de influência nos corredores palacianos, que poderiam prejudicar a trajetória de sua candidata rumo à consagradora vitória eleitoral no primeiro turno.

O que é que leva grupos de militantes movidos por preconceitos ideológicos ou pela convivência promíscua com a generosa distribuição de verbas públicas a considerar a denúncia da existência, nos corredores palacianos, de negociatas, propinas e tráficos de influência como “golpismo midiático”, é um desses mistérios que estão acima da compreensão racional e devem ser creditados ao estado de excitação histérica provocado pelas emoções da campanha eleitoral.

Tanto os fatos são fatos que o governo os confirmou com a demissão dos envolvidos. Não é lícito acreditar o governo tenha demitido inocentes apenas por interesseiro cálculo eleitoral. A imprensa independente e profissional não fez mais do que cumprir a sua obrigação. É a mesma imprensa fazendo as mesmas coisas que os atuais críticos aplaudiam, quando as denúncias eram sobre a compra de votos para a reeleição de FHC, a Pasta Rosa, o Sivam, os grampos das conversas dos articuladores da privatização da Telebrás, as denúncias de Pedro Collor contra a corrupção do governo do irmão Fernando, a compra do Fiat Elba com o dinheiro de PC Farias – etc, etc, etc. A imprensa de então, embora fosse a mesma e fizesse as mesmas coisa, não era golpista – era altiva, isenta, equilibrada e independente.

A imprensa só deve ser livre, no entendimento do presidente, quando informa “corretamente”. E só deve ser livre para ser correta, dentro do seu raciocínio, quando quem decide o que é correto ou não é ele mesmo.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat

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