Filme de terror

Quando eu nasci – quarta de cinco irmãos – dois nomes me esperavam. O de meu pai, Francisco, e o de minha mãe.

Herdar – e honrar – um nome nem sempre é tarefa fácil, mas tenho me arranjado.

Às vezes, quando faço alguma coisa errada, a coisa fica um pouco complicada. Culpar quem?

Minha mãe, a única pessoa com quem poderiam me confundir, não anda mais por aqui.

Nesses momentos, penso que melhor seria – e mais simples – se me chamasse Simone. Adriana. Melhor ainda, Carol.

Ao telefone, nunca me entendem. Ou melhor, entendem, desde que eu adote outro nome.

— Como? Ah, Regina! Tudo bem Regina, depois gente te liga.

— Como? Ah, sim, Viviane! Você pode deixar o telefone, Viviane?

— Como? Zivina? Que nome diferente!

— Como? Ah! Divina, Divina! Que lindo! Nem todo mundo merece um nome desses!

Há alguns anos, quando Leonel – o Prata – e eu estivemos na Mercedes Benz, conversando sobre um futuro trabalho, um dos diretores, após horas de interrogatórios e considerações sobre currículos e afins, concluiu, voz firme, dois ou três tons acima do esperados:

— Muito bem, D. Vívina, vamos apostar na senhora!

Desde esse dia, Leonel se dirige a mim assim, proparoxítonamente. Solidária comigo mesma, antecipei também a sílaba tônica do nome dele, que virou Leônel. E assim, empatados em novas acentuações e pronúncias, incorporamos novos sons e grafias, quase apelidos.

Apelidos? Convivi com alguns.

Criança de fazenda, universo restrito, ganhei dois diminutivos. Miniaturas do nome de minha mãe. Inevitável.  Vivininha, Vininha.

O primeiro perdeu-se no tempo, quando parentes mais antigos – avós, tios – foram desaparecendo.

O outro, quase um segundo nome, tem resistido a tempestades e intempéries. E me aproxima de Vinicius, o poeta de “que seja infinito enquanto dure”, que alguém também cismou de batizar Vininha.

Talvez por querer as coisas de seu jeito, um de meus irmãos, cinco, seis anos, tratou de monossilabar tudo, e virei Nim, por muitos e muitos anos. Pra ele, só ele, até hoje.

Até hoje me lembro de um filme de terror de que me elegeram protagonista. Colégio das freiras, São João del-Rei, anos cinqüenta. Vida coletiva, silenciosa. Filas sem fim, dias afora, noites adentro. Na hora da missa, do café, das aulas, do almoço, do recreio, do banho.

Banho de camisola, tamancos de madeira. Portas sem trancas, a freira – Irmã Irene – policiando os chuveiros, mais de vinte. Portas encostadas, barulho de água caindo.

Todas as tardes, intervalo entre lanche e jantar, ela nos buscava no salão de estudos. Salão enorme, mais de cem internas, da mais nova – eu, quase nove anos – à mais velha, quantos?

Éramos convocadas por turmas, uma de cada vez. Primeira série, segunda, terceira, quantas?

Fila, silêncio, labirintos, biombos sem trancas, mais de vinte. Aí, despíamos uniformes e sapatos, vestíamos camisolas e tamancos.

Uma em cada chuveiro, dez minutos.

Dez minutos. Filme de terror, horror, suspense. Tortura. Lenta, gradual, intensa. Terrível.

Aos oito, nove minutos, Irmã (como, irmã?) Irene nos lembrava. Hora de sair, de chamar outra turma, ninguém podia atrasar ninguém, não era justo, não era certo. Saíssemos.

Nunca dei conta.

Sempre levei a vida devagar. Sem gritos, sem alarde. Sem pressa.

Aprendi datilografia com mais de 30 anos. Comecei a querer escrever uns textos, publicar, e quem poderia garantir que eu teria um marido datilógrafo, ou uma amiga, pro resto da vida?

Tive meu terceiro filho aos 40. Ouvi que, quando tivesse 60, ele teria 20. Correto. Ouvi mais, não teríamos diálogo, gente de 20 não quer saber de gente de 60. Incorreto. Tenho 70, ele acaba de estrear os 30, somos amigos, conversamos muitas conversas. Ouvimos Paulinho, Chico, Pena Branca. Nara. Tomamos vinho.

Aprendi a dirigir aos 55. Ah, pra capotar tive pressa, três anos incompletos.

Nove anos incompletos, o barulho da água caindo apenas de um chuveiro, eu ouvia Irmã Irene, aos gritos, dizer que haviam errado meu nome.

— Você não é Vivina, nunca foi! É Mortuína!

No dia seguinte:

— Vamos , Mortuína, todas já se foram!

No dia seguinte do dia seguinte:

— Vocês conhecem a nova colega? A Mortuína, conhecem?

Droga, por que ainda me lembro disso?

As crônicas escritas por Vivina de Assis Viana para o Estado de Minas, entre 1990 e 2000, estão sendo republicadas pelo site primeiroprograma.com.br, graças a um trabalho de garimpo feito por Leonel Prata, publicitário, jornalista, editor, roteirista e escritor, um dos autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada (MGuarnieri Editorial).

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *