Ela gostava de mim

Hoje, acordei pensando em conversar com o Saramago. Conversa pouca, pequena. De um lado só, monólogo.

Talvez lhe confessasse não ter lido, até o fim, dois – ou três? – de seus livros. Incompetência de leitor limitado, acanhado, arredio. Incapaz de grandes vôos. Ou de vôo nenhum.

Acordei, tomei café, escovei os dentes, li os dois jornais que – sabe-se lá se por vício ou fidelidade – leio todos os dias, e tomei o rumo do computador.

Conversa ou confissão, não seria fácil, pensei. Nunca é. Escrever, seja o que for, é tarefa de teimosos, e que não se veja nessa afirmação elogio algum.

Teimosa, computador ligado, busco os e-mails, que insisto em chamar de cartas. A denominação, sinto, me faz bem. Me aproxima não apenas dos amigos, antigos ou recentes, mas sobretudo de mim, sobrevivente, como o resto do mundo, a algumas alegrias e outras tantas amarguras.

A primeira carta me aproxima de um amigo de sempre, Sérgio Vaz. Ex-aluno nos anos sessenta, em Belo Horizonte, afilhado de casamento nos setenta, em São Paulo. Companheiro de inúmeras sessões de cinema, lá e cá. De conversas sem fim, noites, madrugadas adentro. Ou afora. Jornalista. Quase irmão, quase filho.

Meu quase filho me conta que alguém se foi, e não é o Saramago.

Ela foi uma noiva linda, como costumam ser as noivas. Noiva afilhada, quase filha.

Fomos mães na mesma época. Ela, talvez adivinhando o futuro reduzido, se apressava. Eu, sempre tardia, tardava.

Mães de uma filha e dois filhos, jamais fomos iguais, mas sempre nos identificamos. Em algumas alegrias e outras tantas amarguras, nos irmanávamos. Ela, em sua casa, na João Moura. Eu, em meus lados, nos Jardins, por onde, há mais de quarenta anos, venho perambulando. Telefonemas, visitas, conversas, cafés, chás. Lá e cá. Tudo regado a carinho. Intenso, verdadeiro.

Enquanto, nessa madrugada de domingo, na mais absoluta solidão, me entrego à tarefa dos teimosos, percebo que Suely Rossanez, mãe de uma filha e dois filhos, professora de História graduada pela USP, estimada pelos alunos e amada por quem, como eu, cruzou seus caminhos, só deixou boas lembranças.

Na mais absoluta solidão, entre uma lágrima e outra, sinto que de nada adianta lembrar que há alguns anos não nos víamos. Menos ainda lamentar.

Em meio a todas as lágrimas que me assaltaram desde o momento em que liguei o computador imaginando que iria conversar de um lado só com o Saramago, desde aquele momento, tentando decifrá-la para meus filhos, que não se lembram dela, me pergunto como Suely pode ter me deixado tantas, tão boas e tão profundas lembranças.

Fácil. Fácil. Ela gostava de mim. Ela gostava muito de mim. Não se trata de pretensão, juro, mas de humilde certeza.

Ela gostava de mim, e o mérito, ah, o mérito nunca foi meu.

Nessa madrugada de domingo, solidão absoluta, não sinto tristeza, juro. Mas sou dona de toda a saudade do mundo.

Junho de 2010.

Esta crônica foi publicada originalmente no Primeiro Programa.

5 Comentários para “Ela gostava de mim”

  1. Cara Vivina, de novo. Conheci vc através do site de Sérgio. Aprendi a admirá-la e respeitá-la por suas opiniões e posições. Vc falou que qto à Suely gostar de vc,o mérito não era seu. Pois desculpe-me, eu acho que Suely não amaria alguém que não estivesse à altura. Vc mostrou uma humildade que poucos têm e por isso mesmo, Suely e agora eu, que sequer a conheço, aprendo a amar. Sim, uso esse verbo porque todo mundo só o usa depois que as pessoas morrem. Cada vez mais aprendo que tenho que usá-lo enquanto as pessoas estão vivas. Um abraço!

  2. Eu vi muita beleza no seu texto e me emocionei. Ter uma amiga como vc é ter tudo. Todo ser humano precisa de comida, abrigo, saúde. Mas sem amigos, não adianta ter o resto.

  3. Gloria,

    sabe que não sei o que fazer com você?
    Ando imaginando que meus textos devem estar bem arrumadinhos, já que emocionam quem não conheço. Ou melhor, conheço. Se nos lemos, nos conhecemos. Essa é uma das magias da palavra escrita. Chegar não se sabe onde, emocionar não se sabe quem, ligar almas que têm a ver, ou terão.
    Devemos ter algo a ver. Ou teremos.

    Beijo
    Vivina.

  4. Vivina, eu sei o que você deve fazer comigo: continue escrevendo belas crônicas. Elas sempre vão tocar meu coração, mas só vou reagir quando ele latejar. Um grande abraço!

  5. Ela Suely, eu Sueli. Para nos distinguir nossos colegas de Usp a chamavam de “Baixinha” e eu era apenas alguns centímetros mais alta. Tínhamos também em comum história de família da periferia, e éramos oriundas da escola pública. Certa vez me levou à sua casa, na Casa Verde, para comer uma comidinha de mãe, e que delícia a comida da Dona Diva. Nos reencontramos ao acaso, muitos anos depois: ela já tinha os três filhos, e eu tinha os meus dois meninos. O tempo nos disse que os anos não haviam passado.
    Ah! me ensinou a fumar, e a maioria dos colegas de nossa classe fumavam – detalhe: na sala de aula! Percebemos que o tempo passou quando paramos de fumar. Não é?
    Suely Baixinha, você está tão viva dentro de nós, e teus traços marcantes caminham em Fernanda e Marina. Tua história marcante lá na História-Usp caminha em nós. Sempre beijos.

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