Dois casos d’amor

I

Quando a conheci, em 1991, no século passado, ela estava com 21 anos e não poderia haver coisa mais linda na face da terra. Como ostentava na mão direita vistosa aliança, nem foi preciso perguntar se era noiva. Depois, como eu precisava ir sempre ao escritório onde ela funcionava como secretária do diretor, acabei perguntando quando seria o casamento.

– Se não der nenhuma zebra – respondeu – em maio.

– Ué – levantei as sobrancelhas – e por que haveria de dar zebra?

– Ah, sei lá… É que o meu noivo, como eu, é de Dracena. E eu não gostaria de morar lá.

– E onde você gostaria de morar, posso saber?

– Na civilização, no primeiro mundo.

– Vamos lá, um exemplo.

– Paris. Tenho loucura por conhecer a França.

Depois desse papo e alguns outros, passei bom tempo sem ver a moça, alguns anos. Até que, na semana passada, fui a Cumbica esperar um amigo que chegava da Europa e dei de cara com a antiga secretária desembarcando justamente da França.

– Puxa – vazei minha admiração –, pelo jeito você não está chegando de Dracena, certo?

– Certo – ela respondeu – até porque nem cheguei a ir pra lá.

– Quer dizer que o casamento…

– Pifou. Pifou porque conheci um francês e estou voltando pro Brasil depois de alguns anos.

– Voltando a passeio, naturalmente.

– Não, estou voltando de vez.

– Ué, mas você não conseguiu o que queria? Não escapou de Dracena?

– Na verdade escapei em termos. Pois Pierre, o francês com quem casei, me levou para morar em Saint-Germain-Sur-Val.

– E daí?

– E daí que Saint-Germain-Sur-Val é a Dracena de lá e eu acabei ficando de saco cheio.

– Bom – suspiro – e agora você vai ficar na capital?

– Não – ela mostra os dentes alvos – meu antigo noivo herdou uma grande fortuna, soube que separei e me quer de volta.

– Ah – abro os braços – finalmente, ricos, vocês poderão morar em Paris.

– Não – ela cicia – pôr causa dos negócios dele vamos morar mesmo na Dracena daqui…

      II

Ele chegou e perguntou se eu sabia qual era seu drama, ao que respondi ignorar sequer o meu.

– Pois veja – a figura junta as mãos – eu me apaixonei pela mulher do meu melhor amigo.

Está claro que comentei ser isso o tipo do troço que acontece nas melhores famílias, enquanto o camarada me garantiu que deixara de freqüentar a casa do casal, fugia deles como o diabo da cruz.

– Ótimo, você tinha mais era que se afastar – suspirei.

– Pois é – ele continua – para completar o inferno fiquei sabendo ontem que o meu amigo está com câncer. Terminal, ao que tudo indica. Metástase.

– De fato, é uma barra – baixo a voz.

– Agora, sinta o meu drama: de um lado, o amigo querido com os dias contados; do outro, meu medo de sentir alguma alegria com o vaticínio medonho. Afinal de contas a criatura que amo, em breve, estará viúva… Mas não sou canalha, ouviu?, posso ser tudo,  menos canalha!

– Bom – solto um pigarro – é mesmo uma situação muito chata.

– Sabe, vou acabar mudando para Rondônia. Não quero bancar o abutre. Meu Deus, rapaz, meu Deus, eu não sou canalha!

O papo não foi muito além disso e o estou contando agora porque aconteceu no fim do ano passado, pouco antes do Natal. E ontem eu vinha andando por uma rua do centro, quando vejo nosso herói acompanhado de uma mulher belíssima. Fui apresentado e, assim que o casal se afastou, chamei o cara. Ele tornou enquanto a moça ficou olhando uma vitrine.

– É a viúva? – ciciei.

– Não, o câncer era rebate falso.

Baixou a voz, para soprar:

– Não deu, puxa, não deu. Pois descobri que o que sou mesmo é um grande canalha… Torci pela doença, sabia? Torci pela doença…

Daí pegou a moça pelo braço e sumiu nos desvãos duma galeria.

Esta crônica foi originalmente publicada no Correio Popular

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